segunda-feira, 18 de março de 2024

 

REFAÇA O BATON

 

 

         Vinícius estava cansado. Nadara muito. Sempre que acabava os seus deveres como professor, se não chovia, ele nadava intensamente no mar de Santos onde morava. O sol já quase sumia no horizonte, empurrado pela noite que queria chegar. Antes, porém, de se esconder no fim do mar, o sol escorregva os seus dourados raios pelas ondas que não sabiam se apenas vinham ou se apenas voltavam das areias claras.

          As ondas vadias ainda beijavam os pés de Vinícius saindo do mar quando um grito de socorro chamou a sua atenção. Ele se virou em direção ao grito. Alguém pedia que salvassem um cãozinho que estava se afogando no mar. O coitadinho estava sendo levado pela correnteza marítima e, quase não mais se aguentava debater. Vinícius pegou uma prancha de surfe de um garoto e correu para o mar. Conseguiu pegar o animalzinho. Quando chegou na praia quase não conseguia falar de tão cansado, mas, o cãozinho estava salvo. Enquanto acariciava o bichinho, Vinícius se sentiu abraçado e recebeu um beijo no rosto. Chorosas palavras de agradecimento se misturavam com o suave perfume daquele abraço. O seu corpo molhado se sentiu deslizar em um tecido de seda que vestia aquele abraço. Vinicius se afastou, entregou o cachorrinho que estava com a coleira arrebentada. 

A dona do pet, uma adolescente, agradeceu... 

          __Obrigada. Eu estava passeando com ele na orla da praia. Meu cachorrinho se envolveu em uma briga com outro cão. A coleira rompeu e, os dois correram para o mar. Veja, eu nem estou com roupas de praia.  

          __Está tudo bem com ele. Leve-o. Ele deve estar com frio. 

         Vinícius pegou a sua bicicleta e foi para casa. A noite já chegara linda. Enquanto pedalava a imagem da garota do cachorrinho não saia de seu pensamento. Ainda sentia a seda branca do vestido dela deslizar pelo seu corpo molhado.     

          Vinicius praticava vários tipos de esportes. Gostava de pedalar pela zona rural, nadar e correr.  

        Alguns dias após salvar o cãozinho, em uma corrida na estrada rumo ao interior, cansado, parou para se refrescar em uma cachoeira do caminho. Era ainda madrugada. Uma orquestra de pássaros, de espécies das mais diversas, saudavam a aurora que chegava. Borboletas coloriam o amanhecer em repetidas revoadas.

          Vinícius observou que barulhentas galinhas disputavam o milho que, da porta de uma palhoça, lhes era jogado. Caminhou até às proximidades da palhoça e, qual não foi a sua surpresa. A garota que alimentava as galinhas era a mesma do cãozinho que ele salvara da correnteza do mar, há alguns dias. 

          __Bom dia, mocinha. 

          __Bom dia. 

          __Há alguns dias eu conheci uma linda garota, igualzinha a você. 

         __Linda ela não era, mas, era igualzinha a mim, pois era eu mesma. 

          __Afinal, você mora lá ou aqui? Já era quase noite e você passeava com um cãozinho.  

          __Sim. Era o cãozinho de minha patroa. Eu trabalho lá de empregada doméstica. Todas as tardes eu passeio com o cãozinho dela. Obrigado, mais uma vez, por ter me ajudado. Se o pet da minha patroa morresse, você nem imagina, eu certamente, morreria também. 

          __Você chorou muito. Não era pelo pet? 

          __Também, sim, mas, de medo da patroa, o meu choro era maior.  Daqui a pouco eles vêm me buscar. A filha dela vem me buscar. À noite, ela me traz de volta. 

          __Então, até breve. Gostei de ver você novamente. Mas, a menina que eu vi lá era você mesma. E, mais, ela era linda sim. 

          __Posso ficar vermelha? 

          __Pode sim. Vai realçar os eus olhos claros e as suas poucas sardas charmosas. Até mais. Leve o cão para nadar no mar hoje que estarei lá para salvá-lo.  

          Vinícius retomou a sua corrida de volta para casa, pois, o trabalho o esperava. Era professor de Física e Química no Segundo Grau de vários Colégios na Costa da Mata Atlântica.  

          Estavam recomeçando as aulas, após o período de férias.

          Durante quinze dias o seu trabalho seria dobrado, pois, iria substituir a sua irmã, professora de matemática, que estava em lua de mel. Com apenas dezenove anos, já era um capacitado professor. 

          O recomeçar das atividades escolares é uma festa de grandeza e empolgação. Tudo retoma a vida, a alegria da juventude empolga e convida para a vida que parecia distante. Professor Vinicius já trabalhara durante o dia. Agora, à noite, estava de volta ao colégio. 

          A primeira aula da noite era de Matemática, em substituição à sua irmã, em uma turma da sétima série. Ele não conhecia ninguém daquela turma. Entrou cumprimentando em vós alta e se dirigindo ao seu lugar na mesa do professor. Ninguém respondeu ao seu “boa noite”. Sem se importar, começo a fazer a chamada, pelo número de cada aluno. Cabisbaixo, atento às respostas ao seu chamado, até que chegou no número “33”. O número chamado não respondeu. Não respondeu, mas, a turma caiu na “gargalhada”. Então deduziu-se que o aluno, ou aluna, ali estava. Com a calma que lhe é peculiar, voltou a chamar o número trinta e três e só ouviu a gargalhada da turma, menos a resposta ao chamado. Mesmo assim, voltou a chamar “33” e, novamente o que se ouviu não foi a resposta que queria e, sim, novamente, o gargalhar da turma toda. Calmamente, Professor Vinícius terminou a chamada. Virou-se para apagar a lousa ainda sob risos e piadas da “plateia” de alunos. Com todo o autoritarismo que lhe cabia, Vinícius falou em voz, educada, mas, firme... 

          __Número 33 pode sair que está de falta. 

          __Não vou sair, não posso ter mais falta. 

          Era uma voz trêmula, feminina. Sem olhar para trás perguntou se ela queria que o inspetor de alunos fosse chamado para retirá-la. Ela insistiu que não sairia. Sem se virar ele acionou a campainha e um profissional da Disciplina entrou pedindo licença. Ainda sem olhar para os alunos, sem ver quem era a “mocinha”, Professor Vinícius pediu que ela estava perturbando a ordem e, que não poderia continuar em sala de aula. Ela foi retirada. 

          Na Sala dos Professores, como não poderia ser diferente, comentou-se sobre o episódio. Vários professores que conheciam a aluna, comentaram que ela era uma péssima aluna. Perdoavam pela dificuldade que enfrentava. Trabalhava como doméstica, pais incultos e, a sua patroa, que por acaso era a sua tia é que a mantinha na escola, quase obrigada. Sempre chegava na escola à noite cansada dos afazeres domésticos durante todo o dia. Mas, era tarde, despediram-se e, cada um foi para a sua casa. Professor Vinicius nem chegou a ver a “mocinha”, sabia apenas que ela se chamava Samira. Samira Malka. 

          A casa do Professor Vinícius era próxima do colégio. Ele morava com os pais. Era solteiro. Quando não chovia, ele ia e voltava a pé do colégio. Professor Vinícius acabara de entrar em casa e se preparava para um banho merecido, quando a campainha tocou e a sua mãe foi atender. 

          __Vinícius, meu filho. Tem um casal com uma garota querendo falar com você. 

          Ele, cansado, já se preparava para o banho, mas, foi atender o casal e a garota que já o esperavam na sala. Assustou-se quando reconheceu a garota, mas, jamais imaginaria que ela, a mocinha do cãozinho do mar, seria Samira Malka. No transtorno na sala de aula, eles não se viram, não se reconheceram. 

          __Professor, boa noite. Desculpe o transtorno. Nós somos os responsáveis por Samira Malka no colégio. Ficamos muito tristes com o ocorrido e a trouxemos aqui para lhe pedir desculpas. Peça desculpas, Malka, vamos... 

domingo, 3 de março de 2024

 

 

 

 UM NOVO DEZEMBRO

 

          

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 









                                              DR. AFRANIO BASTOS

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Dedicatória

 

À minha princesa Ana Júlia Bastos

 

 

 Década de sessenta. Juiz de Fora, MG.

           Meu nome é Emílio. Acabei de me formar em Medicina na Universidade Federal de Juiz de Fora.

           Nos últimos dias vivemos só de alegria.  Ontem, o dia da colação de grau, foi apenas festa, comemoração, confraternização e sensação de dever cumprido. 

           Na “República” em que moramos no largo do Riachuelo, todos acordamos muito tarde, hoje.

           Meus colegas de moradia já haviam feito as suas malas e, cada um para um destino diferente, após calorosas despedidas, foram embora e eu fiquei sozinho naquele apartamento. Um apartamento de moradores temporários, de rapazes solteiros, onde os desejos, os sonhos, as vitórias, as derrotas e as aventuras, das mais diversas, se agarravam, se confundiam, se revezavam e disputavam espaços do teto, das paredes, dos móveis e, em tudo estão gravadas.

           Eu me levantei, tomei um bom banho. Estava com fome, mas já havia passado o horário, não só do almoço, mas, também., do jantar, no Refeitório Universitário, o famoso RU.

           Como já passavam das dezenove horas, resolvi sair, ver um bom filme, e, no cinema enganar o estômago com pipocas. Depois comer uma boa pizza.

          Embora estivéssemos em dezembro, ventava muito, chovia forte e o frio incomodava. Tentando não perder o guarda-chuvas para o vento, eu desci a Rua Halfeld e, em todos os cinemas já não encontrei ingresso para aquela sessão. A próxima seria muito tarde. A semana fora desgastante e, embora eu estivesse dormido até tarde, quase o dia inteiro, meu corpo ainda pedia cama.

           Desisti de ir ao cinema e procurei a melhor pizzaria ali da rua Halfeld. Fiz um pedido de minha pizza preferida e, solicitei que, antes da pizza, me trouxessem um bom vinho. A pizzaria estava com poucos clientes e, portanto, não demoraria a ser servido. Confesso que eu estava mais interessado no vinho do que na pizza, embora estivesse com fome.

           Enquanto eu degustava o vinho eu pensava em minha vida estudantil. Meu pai faleceu muito jovem. Eu ainda era criança. Quando o meu pai faleceu eu, com apenas cinco anos de idade, sofri muito. Sofri pelo tanto que ele me amava. A minha mãe guerreira soube me criar, me educar e fazer de mim um médico e, de meu irmão, um engenheiro.  Eu terminara o meu curso de medicina, passara na prova de Pós-graduação em Cardiologia e, na semana seguinte, eu deveria fazer a minha matrícula. Por isso não pude viajar para a minha casa como fizeram os meus amigos de república.

           Eis que, na pizzaria, entra uma jovem, bem jovem, muito bem agasalhada, capa de chuva, botas de cano longo, um gorro a lhe esconder os cabelos, exceto uma mecha que descia por debaixo do gorro ladeando o seu rosto divinamente lindo. Ela se dirigiu ao balcão, fez algum pedido e ali permaneceu em pé.

No mesmo momento em que um garçom entregava o pedido dela e, ela pagava e se preparava para sair, dois mascarados, de armas em punho, entraram na pizzaria anunciando um assalto. Um dos poucos clientes que ali estavam era policial militar a paisana e reagiu. Sacando a sua arma, ele deu voz de prisão aos bandidos.  Eles reagiram. Houve troca de tiros. Os bandidos morreram. Gritando desesperadamente, os clientes saíram correndo da pizzaria. Inclusive eu tentei sair, mas, vi que a bela jovem estava caída no chão e, voltei. Ela estava sangrando muito na cabeça. Eu acabara de fazer o Juramento médico há apenas um dia. Eu não tinha o direito de sair correndo também. Em um rápido exame eu tive a impressão de que fora um ferimento superficial, mas, ela não respondia a chamados e nem a estímulos. Respirava bem e tinha normais os sinais vitais. Provavelmente, uma concussão cerebral.

          O socorro chegou rápido.  Amigos de faculdade estavam na ambulância. A jovem estava sozinha e, eu me ofereci para acompanhá-la.

          Procurei em sua bolsa algum número de telefone para avisar a família. Achei. Naquela época não existia telefone celular. Quando chegássemos na Santa Casa eu telefonaria para a família dela.

             A sua Carteira de Identidade me revelou o nome dela. Era Núbia.  E, a idade também. Ela tinha apenas 16 anos, era uma criança, uma linda criança, apenas uma criança.

            Chovia muito e, a sirene da ambulância abria caminhos no trânsito, que era intenso, na linda Av. Rio Branco, rumo à Santa Casa de Misericórdia. Para um profissional socorrista da saúde, nada existe de mais lindo que a sirene  de uma ambulância.

           No trajeto ela despertou. Despertou sem saber o que acontecera. Naturalmente. Chegou a ficar agressiva. Com muito cuidado conseguimos convencê-la a se deixar levar até o pronto atendimento, até porque ela estava muito suja de sangue. Eu já disse, o couro cabeludo sangra muito.

           Após rigorosa avaliação clínica, normal, como também uma radiografia de crânio (tomografia computadorizada ainda era apenas um sonho, não existia) que mostrava que a calota craniana não fora afetada, apenas o couro cabeludo. O ferimento foi suturado e, sem ser liberada, a jovem foi embora. Foi embora antes que eu ligasse para a família dela.

           Ela saiu dali, mas, não saiu de meu pensamento, muito menos o seu nome, Núbia.

           Uma semana depois começaram as aulas do curso de Pós-graduação. Eu me levantei cedo, me banhei, tomei um rápido desjejum e corri para o ponto de ônibus no Largo do Riachuelo. Cheguei bem na hora, pois o ônibus universitário dava seta para estacionar. O ônibus parou.  Eu entrei. O ônibus não estava cheio. Havia vários lugares vazios. Observei que a moça da pizzaria estava sozinha e tentei me sentar ao seu lado e, dizendo que a cadeira estava ocupada, ela impediu que eu me sentasse. Observei que ela usava uma camisa do Curso Técnico Universitário, CTU. Fiquei muito frustrado e, mais ainda, quando chegamos na Universidade e ela continuava sozinha. Eu desci e ela continuou, pois, ela deveria descer no último ponto.

            Alguns dias se passaram. Eu insistia em tirá-la de meu pensamento, até porque, além de se tratar de uma criança de dezesseis anos, ela fora ingrata e deselegante. Mas, ela insistia em não sair.

           Estava acontecendo o torneio Universitário de voleibol feminino. Naquela noite ocorreria uma semifinal entre Advocacia e Farmácia.  Eu seria o Juiz. Eu fazia parte da liga universitária de ârbritos.

           O jogo já havia começado quando, do alto de minha plataforma de arbitragem, eu a vi entrando na arena  abraçada com um homem. Parecia mais velho do que ela. Estavam muito alegres e vibravam com fortes abraços a cada lance disputado na quadra.  Não tive muita certeza, mas, pareciam um casal de namorados.      

           Quando o jogo terminou e a torcida estava saindo, eu tentei ser notado por ela, mas não fui. O time da Advocacia venceu.

           No dia seguinte teria a outra semifinal entre o time do CTU e o da Medicina.

         Desta feita eu estava apenas como torcedor. Antes de começar o jogo ela, estava conversando alegremente com o seu suposto “namorado”. Logo vi que ela jogaria, estava uniformizada e, logo entrou para fazer aquecimento. Eu não deveria estar ali. Ela era muito mais bela, muito mais sensual, muito mais do que eu poderia almejar.  Lindas pernas torneadas que terminavam (ou começavam) em amolduradas nádegas que não se escondiam totalmente em seu short minúsculo. Muito esbelta. Um tórax sustentando um crânio, ambos, artisticamente desenhados. Nunca observara que um nome poderia ser tão lindo, Núbia e, uma idade também linda, mas, duas coisas me incomodavam... (Eu era dez anos mais velho e, parecia, ela já tinha namorado) .

         O meu time, Medicina, perdeu. O time do CTU foi para final. Enfrentaria o time da Advocacia que vencera a semifinal anterior. Estranhamente, eu não fiquei triste com a derrota de meu time. Núbia, a moça da pizzaria, a baleada que eu ajudei a socorrer e me desprezava, era muito boa jogadora. Também muito contestadora com as condutas da arbitragem, às vezes, arrogante e agressiva.  Mas, havia elegância até em sua agressividade, ou os meus olhos estavam enfeitiçados por tanta formosura.

          Havia algo muito estranho acontecendo comigo. Eu não sabia se estava apaixonado ou apenas enfeitiçado por aquela divindade em forma de mulher-criança, ou, criança-mulher. Embora eu quisesse estar apaixonado, parecia que eu não me importava com o seu “namorado”. Fiquei feliz por ela. Ensaiei ir parabenizá-la, mas, novamente ela me desconheceu e passou por mim correndo para um abraço de felicidade de seu “namorado”. Ele era realmente mais velho do que ela. Aparentemente, nem tanto, mas, era mais velho. Mas, que importância teria? Eu, não sabia se estava apenas “enfeitiçado”?

           Uma semana depois, em um sábado muito chuvoso, às vinte horas, seria o jogo final entre CTU e Advocacia. Seria daqui a uma hora. Optei em não ir.  Preferi ficar em casa tentando ver uma programação qualquer na televisão. Ela já devia estar se aquecendo. Ou quem sabe ainda conversando e se agarrado com o seu “namorado coroa”. Eu tentava ver o filme na TV, mas, o meu pensamento insistia em estar na quadra e, eu teimava e, o fazia voltar e se concentrar no filme.

          Tocou a campainha. Fui atender. Eram colegas da Universidade. Vieram me buscar para arbitrar o jogo. A equipe escalada para aquela noite, ao se conduzir para a quadra, houve um acidente de trânsito em virtude do forte temporal e todos estavam sendo medicados na Santa Casa. Era uma emergência. Relutei inicialmente. Parecia que eu não queria vê-la... ou queria? Querendo, ou não, eu fui levado.

           Enquanto nos dirigíamos para o Centro Olímpico eu cheguei a cogitar da possibilidade de adiar o jogo, em virtude do temporal que parecia aumentar. Meus colegas disseram que seria impossível, pois, a quadra estava cheia de torcedores e, era bem coberta e protegida de qualquer temporal. E, estava mesmo, eu pude ver quando chegamos. Lotação completa e muito barulhenta.

           As duas equipes, Faculdade de Advocacia e CTU, as duas finalistas, estavam em quadra se aquecendo. Não houve atraso com a troca da equipe de arbitragem.

           Ela estava lá. Núbia estava lá. Tentei não a observar. Não consegui. Tive que optar em não a deixar ver que eu a observava. Não sei se consegui.

           E, começou o jogo. E, continuou o jogo. O ginásio era um barulho só. Do alto de plataforma de juiz, correndo os olhos, via-se que parecia haver apenas torcida do time da Advocacia, que, aliás, estava ganhando de 2 sets a zero. As moças do time que estava sendo derrotado, o time do CTU, estavam nervosas, agitadas e, até confusamente indisciplinadas. Mas, ao contrário de comportamentos anteriores, ao contrário do que eu estava preparado, psicologicamente, para esperar dela, Núbia estava serena e, mostrando liderança.  Antes de começar o terceiro set, ela conversou com o técnico longamente e, depois, individualmente com cada uma das colegas em quadra.

           Todas em quadra. Tudo pronto para o reinício do jogo. Os dois times apenas esperavam que, como juiz, eu o fizesse, o autorizasse.

           O olhar de Núbia, pela primeira vez em todos estes dias, semanas, ou meses, se fixou no meu. Obviamente, eu não tentei fazer diferente. Fixei o meu olhar no dela. Nenhum de nós dois conseguiu entender o significado daquele olhar. Mas, eu a senti mais necessária ainda em minha vida. Autorizei o início do jogo, agradecido por estar ali.

           O barulho da torcida era imenso, mas, o time da CTU parecia querer dizer o porquê de estar ali. Ganhou o terceiro set. Núbia comandou aquela reação jogando extraordinariamente bem. E, comemorando aquela tendência de recuperação, vibrando com as colegas em quadra, novamente ela me olhou fixamente. Cheguei a me sentir desconfortável de emoção e felicidade.  Sem tirar os olhos do meu, ela caminhou até mim e me agradeceu por eu estar ali. Não entendi. Eu fui imparcial. Não fui, em nada, responsável, pela vitória naquele terceiro set. Mas, sem entender ou não, começou o quarto set que, magistralmente, foi também ganho pelo time do CTU. Núbia fora a heroína do jogo nos dois últimos sets. O placar era de 2 a 2 naquele momento.

      O tie-break, também, foi vencido pelo time de Núbia que saiu carregada da quadra. Ela fora realmente a responsável por aquela virada. Eu pensei que, depois daqueles dois olhares magicamente fixos, eu teria a oportunidade de falar com ela e a parabenizar. Mas, isso não aconteceu. Depois de receber a medalha, levantar a taça, ela correu para o vestiário e, de lá saiu nos braços de seu “amado”. Eu nunca mais a vi.

            Dois anos se passaram e, sem esquecê-la, eu nunca mais a vi.

            Uma certa manhã, eu estava indo para o trabalho na Santa Casa de Juiz de Fora (eu já terminara a minha Pós-graduação). Parado no sinal vermelho do semáforo, da Avenida Rio Branco, esquina com a Rua Halfeld, ao lado do gigantesco e lindo parque do mesmo nome, Parque Halfeld, eu pude ouvir uma voz de mulher, desesperadamente pedindo socorro. O sinal estava fechado.

           __Socorro, alguém me ajude. Meu pai está morrendo...

           O dever falou mais alto. Quando o dever fala não se ousa desobedecer.  Rapidamente coloquei o triangulo a alguns metros da traseira do veículo e, nos dois para-brisas, coloquei chamativos de “emergência médica” que sempre eu tinha no carro. Corri para o local de onde vinham os gritos. Era ela, Núbia, ajoelhada ao lado daquele homem que eu pensava ser o seu “namorado”. Não deveria pensar isso naquela hora, mas, confesso que senti alívio. Era o pai dela. Ela chorava muito.

           __Calma, Núbia, calma. Conte como aconteceu.

           __Nós estávamos fazendo a nossa caminhada rotineira, ele gritou de dor no peito e caiu. Não mais respondeu. Mas, como sabe o meu nome?

            __Depois eu falo. Corra no meu carro que está no semáforo com pisca alerta ligado. No porta-malas tem uma bolsa grande de emergências. Traga-a para mim e, ao mesmo tempo chame uma ambulância.    

            Neste momento chega a polícia e, ao se inteirar do que estava acontecendo, pelo rádio, chamou o corpo de bombeiros que chegou rapidamente e assumiu o atendimento. Não necessitei usar o meu equipamento. A ambulâncias do corpo de bombeiros seguiu para a Santa Casa levando pai e filha. Eu fui no meu carrol.

           Quando cheguei lá ele já estava sendo atendido na Emergência. Subi para o meu plantão na UTI. Quando passei por ela fui novamente interrogado por ela.

           __Como você sabe o meu nome? 

           __Você se lembra do Campeonato de vôlei onde o time do CTU foi campeão? Você estava lá. A torcida gritava muito o seu nome. Eu era o árbitro. Eu também estava lá.

            __ Entendi.

            __Mas, eu já sabia seu nome.

           __Como já sabia?

           __Quando você foi baleada na pizzaria. Eu também estava lá. Eu socorri você. Assim que o seu couro cabeludo, que sangrava muito, foi suturado, você fugiu do hospital. Mas, tenho que trabalhar. Melhoras para o seu pai.

           __Obrigada por ter atendido o meu grito de socorro e, salvo o meu pai. Obrigada, também, por ter me socorrido na pizzaria.

           Eu disse que não havia necessidade de agradecer, subi para a UTI e assumi o meu plantão. Havia poucos pacientes internados e, todos estava evoluindo bem. Quando me passou o plantão, o colega me adiantou que o paciente que eu atendera no Parque Halfeld subiria para a UTI, pois, havia sofrido um, infarto agudo do miocárdio.

         Assim que o paciente chegou, já acordado, lúcido e orientado e sem dor, foi monitorizado e tomado os cuidados iniciais. Quando eu analisei o resultado do cateterismo coronariano dele, eu não tive dúvida, ele teria que ser operado. Teria que se submeter a uma revascularização do miocárdio. Pedi para falar com a filha e, expliquei da necessidade. Fui muito claro com ela e falei sobre os riscos e benefícios. Núbia chorou muito.

           Não demorou muito e o paciente foi levado para a unidade de cirurgia cardiológica. Em torno de oito horas depois ele estava de volta e muito bem. Eu deixei a filha entrar para vê-lo, através do vidro do isolamento, sem que ele a visse para evitar emoções desnecessárias. Núbia chorava silenciosamente. Eu sugeri que ela descesse até o Pronto Atendimento para ser medicada. Ela não quis.

          Depois de três dias ele saiu da UTI e foi para o apartamento. Em todo esse período, Núbia só saía do Hospital para se banhar, se trocar e, retornava.

          No partamento, além da equipe cirúrgica, eu fazia visitação clínica diariamente. Tive muita oportunidade de conhecer a família, que eram apenas eles, Sr. Fernando e Núbia, pai e filha. O pai que durante muito tempo eu achei que poderia ser “namorado”. Eles tinham uma história triste e, outra, linda.  Núbia já, naqueles dias, havia me contado as duas. Quando comentei com o paciente, pai dela, sobre a vida deles, ele me contou tudo novamente. Disse ele.

          __Eu fiquei viúvo muito cedo. A minha esposa faleceu atropelada. Antes mesmo que eu me recuperasse da dor da perda, uma jovem senhora que trabalhava em nossa casa, sequestrou, roubou o meu filho mais velho, com cinco anos de idade. Durante anos a polícia procurou por ela e não a encontrou, nem o meu filho. Ficou apenas Núbia. Núbia tinha apenas seis meses de idade. Eu tinha que trabalhar, não tinha com quem deixá-la. Eu era motorista de taxi.

          __Sabe, Dr. Emílio. A razão de eu ser muito agarrada com meu pai é esta. Ele nunca me deixou sozinha. Ele retirou o banco do carona de seu taxi, fez ali um confortável bercinho e, aonde ele ia, eu ia junto. Os clientes adoravam viajar com o “taxi da bebezinha’, conforme meu pai me contou.

           __Eu não tinha coragem de contratar outra empregada. Eu tinha medo de que ela roubasse a minha princesinha. Nunca a deixei em creches. Eu queria estar com ela.  Quando ela começou na pré-escola, eu a deixava na escola e ia trabalhar. Ao final da aula eu a buscava, a gente almoçava, íamos a um parque, ela brincava com amigas e se divertia. Então voltávamos para o trabalho. Nesta altura, já não era um bercinho e, sim uma confortável cadeirinha e, ela crescendo, esta cadeirinha também a acompanhava. De repente ela se transformou em minha ajudante. Não apenas uma “caroneira de taxi”. Só nos separamos quando ela está em atividades escolares. Eu insisto com ela para sair e se divertir, mas, ela só vai se eu for junto.

            __Bem amigos, eu tenho que ir. Passo novamente amanhã

para dar alta para você, Fernando. Até mais Núbia.

           Núbia me acompanhou até a porta do quarto. Me abraçou forte e, agradecendo, deu-me um beijo no rosto. Eu senti que não estava ali. Não sei onde, não sei como, mas, meus pensamentos se confundiram com aquele beijo.

           À noite eu voltei ao Hospital para ver um paciente, outro paciente. Quando eu ia saindo, a encontrei no jardim. Ela pareceu muito feliz em me ver. Fiquei surpreso com a súbita mudança de personalidade dela.

           __Dr. Emílio, que bom ver você longe de meu pai. Hoje o meu pai confirmou a história que eu já contara. Eu aprendi a não o deixar sem mim. Ele sempre insistiu para eu sair com amigos, namorar e aproveitar a vida. Mas, e se o meu namorado não entendesse? Se ele não entendesse, eu teria que deixá-lo, jamais deixaria meu pai. Eu tenho que confessar algo para você, mas, estou com vergonha.

          __ Núbia, faz parte de minha formação, ouvir, não julgar e guardar segredo. Fale se quiser.

           __Eu sempre procurei me afastar de possíveis namorados. Eu nunca me interessei por ninguém. No CTU (curso técnico universitário) eu sou muito assediada...

         __O seu maior inimigo é a sua beleza... só de passar perto você assedia alguém. Mas, o que tem para me falar?

         __Eu amo você!....

         __Como?... Não seria por eu ter salvado o seu pai e você está confundindo os sentimentos?

          __Há mais de dois anos, em uma noite chuvosa, eu entrei na pizzaria preferida de meu pai para trazer uma pizza para ele. Ao entrar meus olhos cruzaram com alguém que estava tomando vinho e, me assustei com uma sensação estranha que se apossou de mim. Senti o risco de perder o controle de meus pensamentos. Essa pessoa era você. Quando eu me despertei no hospital e vi você ao meu lado, o medo daquele sentimento se apossou de mim. Eu não tinha aquele direito. A companhia de meu pai era mais necessária. Eu, pela primeira vez, me senti frágil, pela primeira vez eu não consegui rejeitar aquele sentimento. Saí correndo em defesa de minha única responsabilidade. A responsabilidade de não sair e deixar a solidão abraçar o meu pai. O meu pai que nunca me abandonou, que apenas demostrava felicidade me abraçando criança, me abraçando adolescente, me abraçando adulta. Ele nunca desabafou, mas, a saudade da minha mãe e de meu irmão desaparecido não deixavam o seu coração sorrir, apenas os lábios o faziam para me confortar. Eu bem sabia.

Depois, no ônibus universitário, assim que você entrou, eu fui novamente assaltada pelo medo de sua presença e... menti dizendo que estaria ocupado aquele assento. Muito tempo depois, no Ginásio de Esportes da Universidade, naquele torneio de vôlei feminino, por duas vezes eu senti que você estava se dirigindo a mim. Creia, a minha vontade era parar e esperar você, mas, eu despistava e passava direto. O meu coração ordenava esperar você, agarrar e beijar intensamente você, declarar o amor que o seu olhar rápido implantou em meu coração quando eu, toda molhada pela chuva, entrava naquela pizzaria. No entanto, o meu cérebro vencia os desejos do coração e, eu corria para os braços de meu pai.       

          __Que eu pensava, Núbia, que ele era seu namorado...

          __E era, de certa forma, pois, eu nunca quis ter um namorado que me afastasse dele.

           __Você é muito linda, mas o seu coração é mais belo do que o seu corpo.

           __E mais. Você arbitrando aquela final de vôlei onde o meu time foi campeão, eu não conseguia desviar o meu olhar de você. Você parecia não me ver. Apenas duas vezes os nossos olhares se cruzaram e, aquilo foi muto mais felicidade do que o título de campeã.

           __Núbia, naquele jogo, parecia que você jogava sozinha. A torcida só gritava o seu nome, você não parava, incentivava as colegas de quadra, não errava um lance sequer. Não posso acreditar que você estivesse desligada do jogo.

          __Eu fazia um esforço enorme para ajudar o meu cérebro a derrotar o meu coração. Quando estávamos vibrando e sendo cumprimentadas pelas pessoas em volta, eu tive medo de que você fosse me cumprimentar, como foram os juízes de linha, autoridades presentes e organizadores do torneio. Eu tive medo de não ouvir o que você fosse me falar e calar a sua boca com um longo beijo de amor e...

           __Saiu do vestiário carregada por aquele homem, que, na minha cabeça, era seu “namorado”.

          __Sim, sim. Por que, naquela manhã, no ônibus universitário, você não se assentou atrevidamente ao meu lado e, me beijou? Eu queria isso?

           __ Como assim? Como beijar você à força? Você era uma criança de dezesseis anos, apenas.

          __Não, não. Eu era uma mulher que teve o coração invadido, flechado por um “índio pequenino”, eu era um coração explodindo de amor sem poder amar.

           __Eu já era um médico e, você, uma linda criança. Eu jamais, embora quisesse, jamais beijaria você. Eu, se o fizesse, seria linchado pelos universitários que estavam naquele ônibus.

          

           __Não, não. Eu não deixaria você ser linchado. Mais uma vez, obrigada por ter salvado a mim e ao meu pai. Você pode pensar o que quiser, virar as costas, ir embora e, nunca mais me ver, mas, você deveria ter me forçado a fazer o que eu vou fazer agora...

          E, agarrando fortemente Dr. Emílio, ela o beijou na boca freneticamente. Ele respondeu àquele beijo com a mesma intensidade e paixão. Ambos tremiam de felicidade por terem conseguido libertar aquele sentimento que, os maltratava ao mesmo tempo que os enchia de sonhos e fantasias. Estranhamente, ambos sentiram remorso de terem se beijado. Ambos se sentiram envergonhados de tê-lo feito. Ela permaneu abraçada com Dr. Emílio. Tremia. Ele também. Silenciosamente se afastaram e, Dr. Benício se dirigiu para o carro. Núbia voltou para o quarto do Hospital onde seu pai estava internado. Ele dormia. Ela se banhou e se acomodou para descansar.

           Fernando, pai de Núbia, o paciente infartado, recebeu alta hospitalar muito bem recuperado. Dr. Emílio já deixou agendado o dia da revisão, para dali a duas semanas.

           No dia marcado para o retorno, o paciente estava muito bem. Após receber novas orientações médicas Sr. Fernando e a sua filha Núbia convidaram Dr. Emílio para almoçar na casa deles, no final de semana seguinte.

          __Será um prazer, mas, neste final de semana meu irmão virá me visitar. Depois a gente recombina, não?

          __Não, não. Pode levar o seu irmão também. Ele mora onde? Você tem muitos irmãos?

          __Não. Apenas este. É um irmão adotivo. Nós morávamos em uma fazenda. Minha mãe, já viúva, faleceu há um ano. Eu e meu irmão resolvemos vender a fazenda e ele vir morar aqui. Ele se formou em Engenharia este ano e, já está empregado aqui em Juiz de Fora. Não temos mais parentes. Acho que não temos direito de abusar da amizade. Não podemos incomodar.

          __Não será incômodo.  Será um prazer. Leve o seu irmão com você. Srá um prazer conhecer o irmão do melhor médico do mundo. Esperamos vocês, certo?

         Concordaram com o encontro.

          A semana passou rápido. Dr. Emílio e seu irmão adotivo chegaram à casa de seu paciente e de sua filha, a apaixonante, Núbia. Quando desceram do carro, em frente à casa, Fernando, o irmão adotivo de Dr. Emílio parou pensativo. Olhou silenciosamente a casa, a rua, as árvores do lugar. Parecia curioso, surpreso e angustiado.

           __O que foi, Rafael? Parece assustado!

           Neste momento Núbia abre a porta da casa e, assustada, vê o irmão de Dr. Emílio passar por ela, sem a cumprimentar, entrar casa adentro, correr quarto por quarto, depois na cozinha e na área do quintal. Depois chorando voltou para a sala deixando Sr. Fernando assustado. Ele chorava e gritava, que conhecia aquela casa. Depois pegou um porta-retrato em cima da mesa, olhou demoradamente, beijou e abraçou o porta-retrato chorando copiosamente.

           __Eu conheço esta foto. É minha mãe com a minha irmãzinha no colo. O que aconteceu comigo, meu Deus? Agora entendo por que eu sonhava tanto com esta casa, e, com esta foto.

          Todos ficaram sem ação, atônitos, parados sem saber o que pensar. Dr. Emílio foi o primeiro a tentar entender.

          __ O que aconteceu meu irmão. Fernando, o que está dizendo, meu irmão. Não chore Fernando.

           __Fernando? Fernando é o nome de meu filho... meu Deus! É você, meu filho?

           __Papai?  Meu papai. Como você envelheceu! O que aconteceu comigo, meu pai? Onde está a minha bebezinha?

           Núbia e o seu pai caíram num choro descontrolado e, abraçaram fortemente o irmão de Dr. Emílio.

           __Papai, minha irmã, o que aconteceu comigo? Não me lembro seus nomes

           __Esta é Núbia, a sua bebezinha linda. Eu, meu filho, batizei você com o mesmo nome meu. Como você, eu me chamo Fernando.

           Enquanto eles choravam copiosamente, abraçados, Dr. Benício tentava acalmar aquele ambiente de emoção extrema, temendo o coração de seu paciente. Depois de longas interrogações, aconchegos de saudades e paixão, o irmão adotivo de Dr. Emílio quis saber como tudo aquilo acontecera.

           __Meu Deus, meu Deus... o que aconteceu comigo...

           __Fernando, meu filho. A nossa empregada de muitos anos roubou você aqui de casa. Vizinhos a viram sair com você no meu carro. Eu tinha saído para levar a bebezinha ao médico. A sua mãe havia sido atropelada e morta, havia poucos dias. Quando cheguei em casa não encontrei meu carro, as suas roupinhas e as nossas malas. A polícia vasculhou este Brasil inteiro sem sucesso. Muito tempo depois, meu carro foi encontrado em um rio em Minas Gerais. Ela, a empregada, estava dentro do carro, morta. Seu corpinho, meu filho, nunca foi encontrado.

           __Emílio, meu irmão, como eu fui parar na fazenda de sua mãe?

           __Eu sei tudo que aconteceu. A minha mãe me contou toda esta história várias vezes. Eu era muito criança quando você foi morar conosco. Nós tínhamos cinco anos.

           __Como assim, fui morar com vocês?

           __Várias vezes a minha mãe me contou esta história. Segundo ela, da Janela da casa grande da fazenda, ela viu um carro parar na estrada, uma jovem senhora tirar uma criança do carro e, após deixá-lo chorando na estrada, partiu em disparada. Segundo a minha mãe a criança chorava muito. Esta criança era você, Fernando. Você parecia desesperadamente triste. Parecia estar chorando a muito tempo. Você, meu irmão, se agarrou tanto ao carinho de minha mãe que ela ficou receosa de entregar você para as autoridades. Ela nunca imaginou que você pudesse ter sido sequestrado. Ela imaginava que fora a sua mãe que o abandonara. Ela teve medo de que você fosse levado para um orfanato. Meu pai morrera alguns dias antes, ela estava muito sensível. Ela achou em você uma forma de esquecer a morte de meu pai, dizia ela. Ela ficou com você para ela, para nós. Agora, meu irmão, eu entendo por que você estava sempre triste, pensativo. Você tinha muitos pesadelos e acordava chorando.

           __E como você explica eu ter o mesmo nome de meu pai?

           __Segundo a minha mãe, você foi abandonado sem nada. Tinha apenas, no bolso, a sua certidão de nascimento. Você rinha fome e sede, e, chorava muito.

         Todos se abraçaram agradecidos a Deus. Era véspera de Natal. Alguns dias depois seria Natal. Pai, filho e filha receberam o melhor presente de Papai Noel que poderiam querer. Programaram a maior festa de Natal já vista. Todos os vizinhos se encarregaram de enfeitar toda a rua.

           __A recuperação da felicidade perdida daquela família, começara há mais de dois anos, em UM DEZEMBRO na pizzaria... a recuperação da felicidade daquela família se concretizou, de verdade, em UM NOVO DEZEMBRO.

          E o Menino Deus nasceu de verdade em todos os corações. Eu e Núbia nos casamos. Ela fez questão de morar na casa de seu pai... para protegê-lo e para compensar o tempo perdido junto ao seu irmão.

           Foi um momento ineaquecivel aquele “NOVO DEZEMBRO”.          

  

  

  

  

  

  

  

  

  

   QUANDO EU A VIA, O AMOR EXPLODIA EM MIM

  

  

  

 

  

                    Conto de Dr. Afrânio Luiz Bastos  



 

  

  

  

  

  

  

  

  

  

  

  

Dedicatória  

  

À minha esposa, Fátima, presente de Deus para mim e para meus filhos  

À minha irmã Therezinha Bastos sem a qual eu não seria médico  

Aos meus netos Ana Júlia, Bernardo, Benjamim, Thomas, Micaela e a outros que desejo que apareçam  

  

  

  

  

  

   

   

   

Século XIX.

Em um dia qualquer de um destes anos abençoados de Nosso Senhor Jesus Cristo.   

O sol já cansara de trabalhar naquele dia e em algumas horas depois seria substituído pela lua que, naquela noite, seria cheia e, certamente bela.   

Após a lida do dia, sentado em uma pedra do quintal, João Francisco receberia a lua bela com os cânticos mágicos de sua viola de pinho que o seu pai, já falecido, fabricara e lhe dera de presente no Natal.   

Ele terminara o trabalho na roça. Doía-lhe as mãos calejadas pela enxada na capina e plantio de milho.  Chegou em casa. Tirou do dedão do pé, com uma agulha de costura de sua mãe, depois de queimar sua ponta no fogo do fogão a lenha, um bicho de pé que pegara no chiqueiro de porcos do seu João Fernandes.   

Pediu à sua mãe para ir pescar no córrego das pedras redondas em uma cachoeira do lugar. Mesmo sabendo da importância da pescaria para levar o complemento de alimentos para a mesa dela, viúva jovem, e seus cinco filhos ela ordenou que primeiro fosse à moenda do sinhô João Fernandes, dono da fazenda onde moravam, levar milho para trocar por milho em pó que seria usado no cuscuz.  

Obviamente que ele obedeceu. Pegou um pesado saco de milho que ele mesmo descascara e debulhara e foi em direção à fazenda. Enveredou-se pelo caminho espinhento e repleto de perigos onde poderiam se esconder, entre outros, cobras peçonhentas.    

Na moenda do Sr. João Fernandes um fila grande se formava, cada um esperando por sua vez. Era forte o cheiro de suor, poeira e mato que se misturavam naqueles corpos. Doía-lhe as costas sob o peso do saco de milho, mas ele esperava pacientemente, pois necessitava do trabalho da moenda.  Era feita uma troca. Sempre deixavam um terço do milho para pagar o parco milho em pó que levavam para casa. Uma troca desonesta que revoltava a todos que dependiam daquela moenda exploradora. Eles não tinham saída, pois, não era deles a terra em que plantavam e, muito menos, tinham outra forma de tornar em pó o milho que os alimentava.   

De longe João Francisco observava a menina Bárbara que na porta da moenda providenciava o acerto da troca enquanto sofridos escravos faziam a moedura dos grãos. A menina Bárbara estava de férias e era afilhada do dono da fazenda e, da moenda. Ela estudava farmácia em Ouro Preto e iria se formar naquele ano. Era linda, muito linda. Bárbara e João Francisco cresceram juntos naquelas colinas.   

Ainda menina o padrinho dela inventou esta ideia de estudar e ela foi levada, sobre lombo de burros, pela estrada poeirenta para a cidade de Ouro Preto. Raramente ela voltava ali.   

Esta semana seria uma época especial, pois seu padrinho, João Fernandes, estava doando uma terra ao distrito, ao lado do Rio Matipó, na sua reta maior, para se iniciar um povoado. Seria feita uma comemoração e Bárbara viera para a festa.  

João Francisco nunca mais a tinha visto, embora desejasse isso todos os dias e noites de sua vida.  Cresceram juntos, brincaram juntos, estudaram juntos na pobre escolinha da colina.  

João Francisco se apaixonou por ela.  

Sua imagem linda, embora longe e sem se lembrar de um pobre coitado como ele, não saía de sua mente. Ela nem imaginava o que se passava nos pensamentos e nos sentimentos dele.   

João Francisco a recordava caminhando perigosamente em alta velocidade em pelo de cavalo, sem arreio, sem sela. Ela, lembrava ele, parecia uma deusa ou uma fada cavalgando nos pastos de capim gordura desfilando e desafiando as altas colinas. Das altas colinas uma brisa fria descia e balançava seus cabelos de rebeldes cachos amarelos.  Brilhantes   cabelos cor do sol lindamente a deslizar em seu rosto angelical.   

Ela viu João Francisco na fila e foi até ele cumprimentá-lo.  Ele sentiu vergonha de si mesmo. O perfume dela nunca se afastou dele. Ele se lembrou de quando eram crianças e ela o ensinava a escrever. As suaves mãos dela conduzindo as suas, grosseiras e desajeitas, a ensinar-lhe a escrever o bê-á-bá e o a-b-c. Seu simpático sorriso largo, sempre lindo, continuava a lhe enfeitar o rosto.   

Como é difícil tentar esquecer esta paixão de sua vida. Como é difícil pensar em esquecer aqueles dias lindos. João Francisco não deixa de pensar nela e, a cada dia parece que seu amor aumenta mais, como também aumenta a distância entre eles. Ele continua sem cultura e ela cada vez mais estudada. Ele não devia tê-la amado. Acha até que foi atrevido e irresponsável quando o fez, mas, é tarde demais agora para controlar o seu coração. Ela se aproveitou de sua simplicidade, enfiou suas lindas mãos em seu peito amolecido e de lá arrancou seu coração, cravou-lhe uma flecha e o entregou a um anjo pequenino que o escondeu ao longe das colinas azuis.   

Um amor doentio tomou conta de seu ser e, aquele amor proibido estava ali, era ela. Ela foi até ele. Ele estava sujo e cheirava mal pelo suor do trabalho desde madrugada alta. Ela, elegantemente vestida com roupas de cidade, suavemente perfumada, olhos cheios de vida e o mesmo lindo sorriso largo. Ele não sabia se ficava feliz se contentando só com aquilo ou frustrado e triste por não merecer mais.  Ela tocou as suas mãos calejadas e sujas, fazendo o seu coração explodir de amor. Ela lhe perguntou como estava ele. Ele respondeu com respeito e educação. O seu já falecido pai lhe ensinara a conversar bem.

Quando eram crianças, lá na escolinha da serra, antes de Bárbara ir para a cidade grande, enquanto brincavam, ela o corrigia e o ensinava a falar. Também lia os livros do monsenhor João Facunto Chaves que, antes da construção da primeira capela, vinha algumas vezes rezar missa na casa grande da fazenda. Nos horários das missas, no terreiro descalço, eles se amontoavam sentados no chão puro juntos com índios Puris e velhos escravos doentes para ouvir a palavra de Deus.   

        Voltando à realidade conversaram um pouco e ela voltou para a sua atividade na moenda.    

        Chegou a vez do milho de João Francisco ser moído, e foi...  

         Após pegar o pó de milho que a autoridade lhe delegava em troca pelo trabalho da barulhenta moenda movida por água corrente, ele saiu, deixou em casa junto com um maço de couve que  pegara na casa de seu Monteiro em troca de um punhado do pó de milho que  levava. Seu Monteiro mandou que Maria Francisca lhe desse uma cuia d'água para lhe abrandar a sede. Ela, enquanto derramava a água fresca na cuia de coité, olhava João Francisco emocionada e desejosa. Ela gostava dele e, gosto fazia toda a sua família para o casamento. Ele não conseguia dar a ela nenhuma esperança, pois, o seu amor impossível era todo de Bárbara. Ela dizia que se João Francisco não a quisesse de verdade ela iria para o convento ser freira.  

         João Francisco pegou a sua vara de pescar, arrancou com o enxadão algumas espertas minhocas no quintal e caminhou rápido por entre o mato e o capim alto para pescar lambari  no rio que se formava no desaguar de uma cachoeira das proximidades. Sabiás selvagens cantavam alegremente em seus ninhos no pé de angá. Canários- da-terra embelezavam a tarde com seu lindo cântico enquanto suas fêmeas colhiam pequenas minhocas nos barrancos do riacho barulhento. Dois filhotes de coelhos brincavam no capim alto indiferentes ao cansaço do dia que findava e à noite que se anunciava linda. Ainda era crepúsculo. O anoitecer chegava e, lentamente, empurrava o sol para detrás dos montes azuis.

         Quando ele estava chegando, ouviu risos no remanso da cachoeira. Caminhou rápido afastando frágeis ramas de bambu e viu dois jovens índios puris agachados e olhando excitadamente ansiosos. Voltou-se para o lago do remanso e viu duas moças nuas nadando indiferentes a tudo e a todos. Uma delas era Bárbara e, a outra, uma escrava da família que lhe servia de dama de companhia, tão moça quanto Bárbara. Ele já as vira outras vezes ali se banhando. Sentiu um ciúme infernal e partiu para cima dos índios para impedi-los de continuar olhando e travaram uma briga tamanha. Enquanto ele lutava com um deles, o outro correu e, roubando as roupas das duas moças e, fugindo silenciosamente, ele sumiu capoeira adentro. João Francisco e o outro índio puri se machucaram muito e saíram se xingando. O índio que com ele lutava, também correu mato adentro esquecendo e deixando para trás uma fieira grande de lambari que havia pescado. Enquanto isso, um menino escravo já buscara novas roupas para elas na casa grande da fazenda.  

João Francisco voltou para casa onde a sua mãe o esperava com o complemento do jantar. Ele limpou bem limpo lambari por lambari e os fritou bem fritinhos na quente banha de porco. Um gostoso mingau de couve, cuscuz de milho e lambari frito foi o jantar.  Seus irmãos eram amigos, felizes e brincalhões. Conversavam bastante e davam muitas risadas.  Comiam com vontade e, com gostosa fartura, aquela comida pobre.  

 João Francisco acendeu as lamparinas de azeite. Sentou-se com a sua viola de pinho numa pedra junto ao terreiro. Músicas lindas e apaixonadas saltavam das cordas de sua viola. As doces melodias se espalhavam molhadas pelo sereno da noite do lugar e voavam com o vento seguindo rumo à imensidão. Parecia até que as estrelas "lumiavam" mais o chão e se afastavam para deixar a lua cheia o olhar mais de perto.   

De repente, João Francisco foi abordado por um policial o intimando a ir ao posto policial para depor. Um índio puri o denunciara como se ele tivesse roubado as roupas de Bárbara e de sua escrava no remanso da cachoeira. João Francisco negou tudo e não aceitou assinar o depoimento. Apanhou muito do policial, ficou todo marcado de borrachadas do cassetete do policial, mas, não assinou. Ficou preso naquela noite, todo doído e sangrando, mas não assinou por uma coisa que não havia feito.   

Pela manhã o policial, o mesmo, só havia ele no povoado de São João do Rio Matipó, abriu a porta da cadeia e o soltou praguejando ameaças por ele ter se negado a assinar o depoimento. João Francisco já estava  na rua poeirenta quando, da porta da cadeia, o policial gritou com voz firme e alta:  

__Agradeça à madame Bárbara, pois, foi ela que lhe mandou soltar.   

Curiosos o rodeavam e comentavam seus machucados e a sua humilhação. Chorando, a sua santa mãe veio recebê-lo e o escorou na volta para casa. Ao passar pela porteira que dá acesso ao terreiro ele desmaiou. Desesperados ela e dois de seus irmãos o carregaram até o barraco e o deitaram em uma rede limpa. Trocaram cuidadosamente a sua roupa ensanguentada e cobriu as lesões com uma pasta de confrei.   

A notícia se espalhou pelo povoado. Seus amigos vieram visitá-lo. Todos o conheciam bem e, mais, sabiam do seu amor pela filha da Casa Grande. Apostavam que não fora ele. Um deles chegou a questionar por que ele não reagiu e não lutou com o policial. Teria sido pior e ele teria que fugir, pois, outros policiais, certamente, seriam enviados da "freguesia" de Abre Campo a ajudá-lo a manter a ordem e o respeito à autoridade.   

João Francisco já se sentia bem por não ter assinado o depoimento no mal escrito livro de registros e ocorrências.   

Neste instante chegou uma escrava de Bárbara com uma "encomenda" para ele. Disse a escrava:  

__A senhorita Bárbara ficou sabendo do ocorrido e mandou este chá que ela mesma fez para voismicê. É uma decocção de confrei com água e vinho e serve para sarar a dor e a inflamação. 

 João Francisco agradeceu e a escrava saiu apressada. Mesmo antes de tomar aquele chá ele já se sentiu melhor. Fora feito e mandado pela sua amada. Ela fora a causa da sua prisão e das suas lesões. Parecia que se importava com João Francisco, o que lhe fazia muito bem saber.  

          Continuava a vida como Deus a determinou. Já dois anos haviam se passado. Alguns alqueires de terra foram doados pelo padrinho de Bárbara ao longo do trajeto mais reto do rio Matipó. Ali se construiu uma capela, que levou todo este tempo para ficar pronta, em homenagem a São João.

 

          Na construção da capela João Francisco trabalhou duro, como voluntário, ao lado de alguns amigos, sem nada receber. Trabalhavam às noites, sábados e domingos, até deixarem pronta a capela de São João Batista. Monsenhor João Facunto Chaves passou a rezar diariamente na capela e não só ocasionalmente como fazia antes na Casa Grande da fazenda.  

         Era junho, época de festas juninas, dia de São João, e uma grande festa foi preparada para aquele sábado. Bárbara já estava formada e trabalhava no lugarejo. Vários amigos dela vieram da cidade grande em lindos cavalos marchadores e estavam hospedados na Casa Grande da fazenda. João Francisco morria de ciúmes dos amigos dela e chegava a se deprimir e a se odiar por não ter qualidades para disputar o seu amor.  

         Fora uma grande festa. Bandeirolas coloridas de papéis cortados, amarradas em barbantes entrelaçados, completavam um cenário festivo. Ao fundo o mastro, com a imagem de São João Batista, personalizava a comemoração. De muito longe, da Diocese de Mariana, vieram a banda de música e os congados, sendo todos os instrumentos transportados por tropa de burro e os músicos e dançarinos em lindos cavalos de raça. Ficaram todos hospedados na fazenda de seu João Fernandes. Doía-lhe novamente o ciúme de sua desejada Bárbara pelos rapazes que se hospedavam na casa de seu padrinho onde ela costumava frequentar.  

         Grandes valetas foram cavadas no solo onde troncos se queimavam em brasa assando centenas de grandes pedaços de boi transfixados por espetos de bambu. Todos do povoado comiam sem economia aquela oferenda do padrinho de Bárbara. Sanfoneiros se postavam noite adentro no ritmo de músicas de época. Violeiros apaixonados faziam as cordas de seus instrumentos levarem as suas mensagens de amor   às caipiras virgens do lugar.  Até mesmo João Francisco mandou a sua mensagem, não só tocando, mas, também cantando. As cantatas dele eram juras de amor para a sua doce Bárbara que nem ali estava. Talvez bastante ocupada com os seus convidados na casa grande da fazenda.    

          No dia seguinte foi o tempo de se recuperar da ressaca da festa. Ninguém faltou à missa das dez naquele lindo domingo de sol. João Francisco e seus cinco irmãos, juntamente com a sua mãe, voltavam famintos para casa depois da demorada homilia (como dizia o padre).            

          Quando estavam atravessando a porteira, quase foram atropelados por vários cavaleiros. Talvez uns sete ou oito, não se sabe ao certo, que passaram em disparada gritando desesperados que estavam sendo perseguidos por uma onça. Assim como chegaram sumiram na curva do morro. Logo em seguida uma linda voz conhecida passou a galope, em seu cavalo de raça, gritando loucamente por socorro. Logo atrás, a perseguí-la, uma onça pintada gigantesca, rugia seu ruído mais ensurdecedor. O cavalo de Bárbara tropeçou atirando-a no poeirento chão de terra batida deixando-a à sua sorte, frente ao gigantesco e faminto felino. Era ela, a Bárbara bela tão amada e desejada, tentando se levantar. A onça, ameaçadora, caminhava lentamente em sua direção estremecendo o terreiro com seu rugido mais forte. Necessitando matar a sua fome, o gigantesco felino já tinha certo a sua desprotegida e fácil refeição. Angustiado, João Francisco não sabia o que fazer. Ele não podia perder a sua amada mesmo ela o desconhecendo e, já que era desconhecido, por que continuar vivo. Ele só tinha um facão na cintura. Quando deu por si já estava pulando em cima da onça e, quase irresponsavelmente, agarrando-a pelo pescoço e deferindo-lhe repetidas facadas com toda a força de seus musculosos braços. Atirado ele foi ao chão e pareceu sentir o peso daquele feroz animal sangrento a lhe morder os braços e o tórax. João Francisco gritava de dor com as mordidas da pintada, mas, não deixava de desferir nela repetidas e certeiras facadas. Já quase desfalecido, ouviu-se um tiro e o gigantesco animal caiu morto em cima dele.   

          Quando deu por si, ele estava em uma cama de verdade (nunca havia deitado numa), na casa grande. Alguém lhe dera banho e a sua amada farmacêutica cuidava de suas feridas. Com linhas comuns bem fervidas, ela "costurou" as suas lesões maiores. O mesmo amassado de folhas de confrei era usado nas feridas. Repetidas doses de chá quente de confrei com água e vinho lhe eram dadas. Compressas de água tentaram lhe aliviar a febre. Por muitos dias permanecera desfalecido e, conforme lhe contaram depois, delirando com a febre que teimava em não ceder. A farmacêutica Bárbara não se desligava dele. João Francisco sentiu medo que, em seus delírios, lhe tenha mencionado o nome. Quando teve condições de ir embora vários dias depois, quero dizer muitas semanas depois, João Francisco agradeceu envergonhado por não ter como pagar. João Fernandes lhe respondeu:  

         __ Meu amigo, meu amigo. Se aqui alguém tem que pagar alguma coisa somos nós. Você se arriscou para salvar da morte certa a minha menina Bárbara. Os amigos dela lá da cidade correram todos e a abandonaram à própria sorte. Se não fosse o Chico caçador você teria morrido. Fiquei tão emocionado com sua atitude que dei um pedaço de minha terra para sua mãe plantar uma horta e criar alguns porcos e cabras. Mandei fazer também uma casa decente para vocês com quartos grandes e camas para todo mundo. Tudo isso é muito pouco pelo que você fez por nossa família. Vá com Deus.  

         E continuou ainda seu João Fernandes:  

          __ Que mais eu posso fazer por você em agradecimento?  

João Francisco olhou fixamente nos olhos de Bárbara a quem só por prêmio poderia pretender o seu coração, se quisesse um. Não bastava só ele a querer. Também não seria bom se ela o quisesse por dó, por compaixão ou por agradecimento.  

         Um carro de duas juntas de bois o levou para casa, agora um pouco mais longe. A sua mãe estava com ele. Não saíra de seu lado durante todas aquelas semanas. Alguma parte de seu corpo ainda doía quando entrou em sua casa nova, que era bem bonita e confortável. A sua mãe merecia e, também os seus irmãos. Eles já, enquanto João Francisco estava moribundo, plantaram verduras e legumes na horta. Já ordenhavam as cabras e o milho engordava três porcos no chiqueiro. Galinhas corriam pelo quintal que não era pequeno. Teriam uma vida mais segura e tranquila, se  soubessem manipular o que lhes foi dado. Certamente saberiam, pois queriam melhorar de vida. Ele, sua mãe e seus irmãos estavam constrangidos de aceitar “aquele” pagamento em troca da vida da afilhada do fazendeiro.  

          Depois de mais recuperado eles foram lá conversar com João Fernandes, padrinho de Barbara e dono da fazenda, sobre o constrangimento que a doação lhes causou.  Saíram de lá convencidos de que aquilo não era nada frente à fortuna do seu João Fernandes, sem falar no sacrifício de quase morte de João Francisco. Voltaram para casa menos desconfortados.  

         No dia seguinte era domingo. Um frio domingo de fim de inverno. Chovia. Chovia muito. Enxurrada e barro lamacento dificultavam a todos de caminhar pelas ruas descalças. Mesmo assim não faltaram na missa da capela. Monsenhor João Facunto Chaves fez uma linda homilia. Ao final da missa ele pediu aos fiéis que rezassem em agradecimento a Deus pelo restabelecimento de João Francisco. Ele ficou emocionado pela vibrante oração daqueles amigos humildes.   

          João Francisco deixou que todos saíssem. Permaneceu ajoelhado. Ainda sentindo alguma dor, rezou ao seu santo protetor em agradecimento não só pela sua vida, mas, pela gratidão do padrinho de sua amada de facilitar a vida de sua mãe e de seus irmãos.   

          Monsenhor João Facunto, quando saía, foi até onde ele estava, sentou-se ao seu lado com o cuidado para não interromper a sua oração. João Francisco falou primeiro:  

         __ Obrigado monsenhor pela linda oração por minha recuperação. Fiquei emocionado com a resposta de nosso povo acompanhando a sua reza.  

        __ Meu filho, meu filho... Somos todos irmãos. Além disso, você é um filho de Deus e, saiba, um filho de Deus muito especial, muito amado, muito querido por nosso povo.  

        __ Padre, o Senhor me conhece desde menino. Muito raramente o Senhor vinha rezar missa aqui, ainda no terreiro da casa grande da fazenda, e eu sempre estava lá aprendendo a “falar certo” como o senhor dizia. Como o senhor me conhece sabe que eu não estou confortável com o pagamento que seu João Fernandes deu à minha família pelo que aconteceu.  

        __Não, não! Claro que não! Ele nada lhe pagou, pelo contrário. Pelo contrário meu filho, ele enganou você e tentou abafar seus nobres sentimentos. Eu estava a todo o momento ao seu lado, durante todo o período mais grave de seu restabelecimento. A febre parecia querer consumir você. Você delirava e falava alto e, em todo momento, você declarava a sua paixão por Bárbara. Delirando você descrevia cada facada que dava na grande onça pintada e sempre gritando que amava Bárbara e que não a deixaria ser ferida ou maltratada. Sua amada Bárbara não saía de seu lado e ela chorava muito quando ouvia o nome dela de sua boca. Seu João Fernandes, com o prêmio que deu, só quis compensar e afastar de você outras futuras pretensões. Se você realmente gosta de Bárbara, se você quer de verdade a sua amada, meu filho, só tem um caminho. Vá para a cidade grande estudar.  

         __Como, monsenhor? Como?  

         __Só depende de você querer. Tenho amigos em Ouro Preto que podem lhe dar um ofício e, ao mesmo tempo, lhe abrir horário para estudar. Agora você pode provar que ama Bárbara de verdade. Estudado você estará no mesmo nível dela. Seus irmãos já têm facilidade para se virarem sozinhos. E, você se formando, poderá ajudá-los mais tarde, certo?  

         __Vou conversar com meus irmãos e com a minha mãe e volto a falar com o senhor.  

         João Francisco voltou para casa e, no trajeto de volta, a sua mente trabalhava a proposta do padre. Pela tarde, Bárbara passou na casa dele para revisar os seus ferimentos. Estavam ótimos. Ela aproveitou para opinar sobre a sua ida para a cidade grande para estudar. Ela até lhe deu o nome de um ourives e joalheiro amigo dela dizendo que ele não deixaria de ajudá-lo. Já ali mesmo escreveu uma carta de apresentação. Ela lhe desejou boa sorte e foi embora.  

 Sabendo que poderia ser mesmo mais uma maneira de se aproximar de Bárbara, tendo cultura igual à dela, podendo conversar no nível que o dela, João Francisco decidiu ir. Também, depois de formado, poderia ajudar os seus irmãos e descansar a sua mãe da lida diária.  

Enfrentou uma aventura até então desconhecida. Uma longa viagem em um burro de carga que a igreja lhe emprestara. Enfrentou poeira e chuva pelo caminho. O monsenhor lhe dera algum dinheiro para ele pernoitar em alguma pousada nas noites daquela longa jornada, mas, ele preferiu guardá-lo para usar em seus estudos.   

Ele foi muito bem recebido pelos amigos de Bárbara. Parece que ela era mesmo muito querida deles. Passaram a tratá-lo como herói quando souberam do seu feito para salvá-la.  

          João Francisco estudou e trabalhou muito. Terminou o segundo grau e ingressou na Escola de Minas e se formou em engenharia.  

          Voltou para casa depois de oito anos. Encontrou todos bem em sua casa. Todos estavam muito felizes e orgulhosos com a sua formatura. João Francisco ficou alegre porque todos progrediam no trabalho na roça e cresciam junto com o crescimento do povoado de São João de Matipó.

            Ele teve medo de perguntar pela sua adorada Bárbara. Não esperaram pela sua pergunta. A sua mãe disse que ela se casara. O nosso novo Engenheiro se calou. Ele não deveria sentir isso, mas, chegou a ter muita tristeza, uma enorme frustração, na verdade, ódio. Perdeu a fome e agradeceu quando a sua mãe o chamou para almoçar. Entrou para o banheiro para que ninguém o visse chorar. Banhou-se para tirar o pó do caminho.  

          Tentou esquecer e descansar um pouco e não conseguiu. Montou seu cavalo de raça trotador, sim, agora ele tinha um. Foi até a capela agradecer ao Monsenhor por ter feito dele um engenheiro.   

Enquanto o seu cavalo o conduzia pelas ruas da vila, ele programava voltar para Ouro Preto. Não tinha mais o que fazer ali.   

Observava, passando pelas ruas, melhorias no comércio local. Pode ver uma loja de roupas, uma venda de secos e molhados. Em um bar, alguns antigos amigos jogavam sinuca e saíram à porta para o verem passar curiosos. Certamente não o conheceram. Voltaria ali depois para cumprimentá-los, pois, certamente eram conhecidos. Todos o eram quando saiu para estudar, pelo menos a maioria deles.  

          __Padre!  

Chamou a meia distância, pois ele conversava com alguém debaixo de uma das duas grandes árvores que tinha na praça da capela. Monsenhor João Facunto se levantou, virou-se ajeitando os óculos que lhe davam uns ares engraçados. Ao reconhecer João Francisco apressou-se a alcançá-lo.  

          __Meu filho, meu filho, que saudades. Todos os dias destes oitos anos eu perguntava por você, eu rezava por você.  

          __Obrigado padre por tudo que o senhor fez por mim. Sou um engenheiro de Minas graças ao seu incentivo, graças ao seu apoio. Isso sem falar do dinheiro que me emprestou para despesas pelo caminho e a mula que me deu para me levar junto com minha mala de roupas até Ouro Preto. Aqui tem um dinheiro, tome. Acho que dá para pagar seu empréstimo e a mula, não?  

          __Não quero meu filho. Dê à sua mãe e aos seus irmãos.  

          __Não, padre, eles não precisam mais. Progrediram muito depois que ganharam a terra para plantar e estão bem. Pode pegar padre. Fica para as obras da capela. 

          __Tudo bem, João Francisco. Se você insiste tanto, vou aceitar para as obras da paróquia. 

           __Agora, padre, quero que me abençoe para eu tirar de meu coração este quase ódio que nele se instalou por Bárbara ter se casando com outro.  

          E duas lágrimas atrevidas deslizaram pelo seu rosto bem barbeado, exatamente bem barbeado para encontrar a sua amada que agora pertencia a outro homem e ele nem mais a poderia ver!  

          __Não meu filho, não meu filho. Não necessita eu abençoar você para trocar por compreensão o ódio que se instalou em seu peito. Na verdade, tudo de bom que aconteceu com você e sua família foi a menina Bárbara que colaborou para acontecer. Por favor, trate de esquecê-la, pois, está casada e o fez diante deste altar de Deus e só a morte pode liberá-la deste juramento, você sabe disso.  

          __Como assim padre?  

          __Vamos enumerar? Você foi preso e maltratado injustamente pelo sumiço da roupa dela e ela se condoeu e o mandou soltar. Você lutou bravamente com aquela onça e quase morreu. Você o fez por amor. Você sofreu e, tentando afugentar você de Bárbara, seu João Fernandes, padrinho dela, fez o que fez para a sua família que, como você mesmo diz, está progredindo na terra própria. Agora, convenhamos você não foi à busca de cultura porque eu ajudei. Você não se firmou em Ouro Preto pela carta de Bárbara ao amigo joalheiro dela. Você foi empurrado para Ouro Preto em busca de melhorar sua posição social e ter mais condições de lutar pelo seu amor. Logo, meu amigo, você subiu na vida graças a seu amor por Bárbara. Volte para Ouro Preto e busque outro amor, continue progredindo na vida.  

          __Com quem Bárbara se casou?  

         __Acho que não deveria saber. Vá embora. Esqueça esta moça. O que importa com quem ela se casou?  

          __Eu vou sim, padre, mas, diga-me o nome dele. Eu preciso saber. Se o senhor não me disser eu vou perguntar a ela e será pior.  

          __Muito bem, meu filho. Por capricho do destino ela se casou com um índio. Um índio Puri. O mesmo índio Puri que roubara a roupa de Bárbara naquela tarde no remanso das pedras redondas da cachoeira. Você por culpa dele, naquele dia, foi espancado e preso.  

          __E eles vivem bem?  

          __Vá embora, meu filho. Isto não é da sua conta...  

          __Pela sua resposta eles não vivem bem, não é?  

          __Sim, eu não deveria lhe contar isso, pois, vai fazer você sofrer e não é você que conseguirá consertar isso. Ele é uma pessoa má, alcoólatra, agressivo, não trabalha e, sem nenhuma classe, sem nenhuma cultura. Não sei por que a nossa pequena Bárbara foi se envolver com uma pessoa deste nível. Ele vive na venda de Sr. Norim se embriagando.  

         __Mas, ele não a agride certo?  

   

          __Agride sim. Muitas vezes ela foi agredida por ele.  

         __Padre do céu, por que ele tolera isso, me diga?  

         __Ela é uma verdadeira cristã, meu filho. Não se envolva nisso. Volte para Ouro Preto, vá viver a sua vida profissional que será linda. Não fique aqui, vá embora!  

          __É isso que significa ser cristã? Ou cristão? Ela tem que se submeter ao sofrimento para provar que é cristã? Não creio no que estou ouvindo, padre. Que Deus é este? Este Deus não é aquele que me ensinou no catecismo. O Deus que eu aprendi não quer que as pessoas sofram. Desculpe padre. Vou embora sim, pois jamais vou concordar com isso. Como o senhor disse, eu não vou conseguir mudar isso. Volto amanhã para Ouro preto. Abençoe-me, monsenhor. Antes de partir, volto para me despedir.  

          __­­Vá com Deus, meu filho. Dê lembranças à sua mãe. Diga aos seus irmãos que eu não os vejo na capela. Apenas vejo sua mãe. Deus os quer aqui.  

          __Eu direi padre.  

João Francisco voltou pensativo trotando o seu cavalo marchador. Doía-lhe o coração pelo sofrimento de Bárbara. Resolveu andar pelo povoado para ver as mudanças que tanto falavam que tinham acontecido. De longe ele observou uma farmácia. Caminhou até lá. Era a farmácia de Bárbara. Desceu do cavalo e o continuou puxando pela rédea e caminhando em direção à farmácia. Entrou. Ela, assim que o viu, fugiu para dentro. Chegou a ver seu braço na tipoia e um olho muito roxo. João Francisco a chamou e não foi atendido. Ela o reconheceu e não quis ser vista naquele estado.

João Francisco voltou triste para casa. No trajeto de volta ele mudou de ideia e foi até a venda do Sr. Norim. Desceu do cavalo e o amarrou em um travessão apropriado na porta. Alguns amigos o cumprimentaram. O marido de Bárbara sentado em um saco de arroz, recostado ao balcão de tijolos sem reboco levantou o mini copo de aguardente e o levou à boca num gole só. Quando viu João Francisco levantou-se e foi logo o insultando:  

          __Olha só quem está aqui. Está bem seu almofadinha, hein?  Olha aí gente, ele agora é doutô, doutô da cidade grande. Quer tomar uma pinga “seu” doutô?  Sua amada, que voismicê nunca conseguiu namorar é agora a minha muié, sabia? Minha muié! Nunca mais vai ser sua, entendeu seu almofadinha? Minha muié. Eu pago uma pinga pra voismicê pra comemorar. “Seu” Norim bota uma pinga “prele”.  

“Seu” Norim obedeceu e colocou um mini copo de pinga no balcão. João Francisco o pegou, levantou-o até a boca e voltou a colocá-lo no balcão e disse com voz firme e tendo todos a olhá-lo:  

        __Eu ainda gosto de uma pinguinha. Eu vou tomar esta pinga para comemorar seu casamento, mas, eu vou pagar.  

E, tirando o dinheiro da algibeira o colocou sobre o balcão. E completou:  

         __Não posso aceitar um brinde de um homem que bate na mulher...  

O índio puri se levanta, pega o mini copo no balcão e atira a pinga no rosto de João Francisco. A aguardente arde em seus olhos e o ódio em seu coração. Assim que ele coloca o copo no balcão de tijolos crus João Francisco o pega e o atira violentamente no rosto do índio Puri.  Conseguiu atingi-lo em plena região de supercílio direito com um ferimento que sangra muito. Pareceu querer desfalecer com o impacto do lançamento, mas, recuperou-se rapidamente. Saiu praguejando furioso e gritando para João Francisco não se meter com a família dele. Depois de secar o rosto da pinga nele atirada, João Francisco voltou para casa.  

          O jantar estava pronto. Agora ele estava com fome. O episódio na “venda” abriu o seu apetite. Que saudade da comidinha de sua mãe. Cheirava na cozinha o frango ensopado com lobrobô (ora-pro-nóbis) A fumaça do fogão à lenha misturava-se à fumaça do caldeirão de arroz e da vasilha de mandioca cozida. João Francisco pediu desculpas à sua mãe, mas, não resistiu ao ver aquelas linguiças secas na fumaça penduradas em cima do fogão e teve que matar a saudade e comer um bom pedaço assado na brasa.  

Era noite alta e João Francisco tocava a sua viola no terreiro tendo como plateia, no chão, cabras e vacas, e no céu, as mesmas estrelas disputando com a lua um espaço no escuro do céu. De repente vieram gritando que o índio puri acabara de matar a sua esposa e fugira para a serra de malacacheta. João Francisco largou a viola, pegou o seu cavalo e correu até a casa grande. Deu de ombros empurrando curiosos ali aglomerados e, estirada no chão da varanda, deparou com a sua sempre pretendida Bárbara, morta. O peito com várias perfurações de faca e o sangue, que tanto desejou amar, tingindo o chão de tábuas de braúna por onde escorria. Ajoelhou-se sobre aquele sangue e, em um choro incontrolável, abraçou pela primeira vez aquele corpo que tanto desejou, querendo, talvez, trocar de lugar com ela. Seu sangue, ainda escorrendo, molhava o peito dele que não cabia de dor e ódio. Levantou-se com os punhos serrados e gritou com toda a força que o ódio lhe permitia:  

         __Índio puri, desgraçado. Você destruiu minha vida, seu maldito dos demônios. Eu vou buscar você seu canalha. Vou até o inferno. Eu vou trazer você arrastado pelo rabo do meu cavalo de onde você estiver até aqui e farei você lamber este sangue sagrado de minha amada Bárbara.  

E num salto rápido pulou na cela de seu cavalo e correu noite adentro subindo e descendo morros e logo o alcançou correndo a pé pelas encostas brilhantes de malacacheta. Quando viu que era realmente ele, João Francisco gritou enfurecido:  

          __Seu índio desgraçado, volte aqui seu covarde, venha bater em alguém de seu tamanho.  

          __Quer morrer também seu almofadinha da cidade grande? Então morra.  

         Estranhamente, João Francisco ouviu dois tiros e viu seu cavalo correndo de volta e, viu também o seu corpo rolando pela encosta. Ele correu até o seu corpo e o seu corpo estava morto. Não viu mais o índio. Não viu mais as minas de malacacheta. Não viu mais a noite.Não se viu mais...  

A vida terrena de João Francisco acabara ali. Naquela mesma madrugada, ainda fugindo a pé, o índio sentou-se em um cupim para descansar, foi picado por uma cobra jararaca e morreu.  

Parece que o espírito de João Francisco estava apenas esperando a morte de seu assassino. Assim que o índio foi morto pela cascavel, ele voltou a se ver, mas, não na terra. Ele se viu em uma gigantesca escadaria de prata que parecia flutuar e ser carregada por também gigantescas nuvens brancas. Ali, onde flutuava, ele não conseguia sentir ódio. Dali ele podia ver, como em um filme, cenas do mundo inteiro que não conhecia. Conseguia ver a dor de sua família, na terra, sendo consolada por anjos do céu. Mas, outros anjos, pequeninos, o despertaram para a nova vida que, agora, seria eterna. Outros anjinhos trouxeram até ele o espírito de Bárbara. Estava linda, chegou com o seu sorriso largo. Deram-se as mãos, beijaram-se intensamente e continuaram subindo, juntos, as escadarias do céu.  

 

  

  

  

  

  

  

  

  

  

  

  

  

  

  

  

  

  

  QUANDO EU A VIA, O AMOR EXPLODIA EM MIM

  

  

  

 

  

                    Conto de Dr. Afrânio Luiz Bastos  



 

  

  

  

  

  

  

  

  

  

  

  

Dedicatória  

  

À minha esposa, Fátima, presente de Deus para mim e para meus filhos  

À minha irmã Therezinha Bastos sem a qual eu não seria médico  

Aos meus netos Ana Júlia, Bernardo, Benjamim, Thomas, Micaela e a outros que desejo que apareçam  

  

  

  

  

  

   

   

   

Século XIX.

Em um dia qualquer de um destes anos abençoados de Nosso Senhor Jesus Cristo.   

O sol já cansara de trabalhar naquele dia e em algumas horas depois seria substituído pela lua que, naquela noite, seria cheia e, certamente bela.   

Após a lida do dia, sentado em uma pedra do quintal, João Francisco receberia a lua bela com os cânticos mágicos de sua viola de pinho que o seu pai, já falecido, fabricara e lhe dera de presente no Natal.   

Ele terminara o trabalho na roça. Doía-lhe as mãos calejadas pela enxada na capina e plantio de milho.  Chegou em casa. Tirou do dedão do pé, com uma agulha de costura de sua mãe, depois de queimar sua ponta no fogo do fogão a lenha, um bicho de pé que pegara no chiqueiro de porcos do seu João Fernandes.   

Pediu à sua mãe para ir pescar no córrego das pedras redondas em uma cachoeira do lugar. Mesmo sabendo da importância da pescaria para levar o complemento de alimentos para a mesa dela, viúva jovem, e seus cinco filhos ela ordenou que primeiro fosse à moenda do sinhô João Fernandes, dono da fazenda onde moravam, levar milho para trocar por milho em pó que seria usado no cuscuz.  

Obviamente que ele obedeceu. Pegou um pesado saco de milho que ele mesmo descascara e debulhara e foi em direção à fazenda. Enveredou-se pelo caminho espinhento e repleto de perigos onde poderiam se esconder, entre outros, cobras peçonhentas.    

Na moenda do Sr. João Fernandes um fila grande se formava, cada um esperando por sua vez. Era forte o cheiro de suor, poeira e mato que se misturavam naqueles corpos. Doía-lhe as costas sob o peso do saco de milho, mas ele esperava pacientemente, pois necessitava do trabalho da moenda.  Era feita uma troca. Sempre deixavam um terço do milho para pagar o parco milho em pó que levavam para casa. Uma troca desonesta que revoltava a todos que dependiam daquela moenda exploradora. Eles não tinham saída, pois, não era deles a terra em que plantavam e, muito menos, tinham outra forma de tornar em pó o milho que os alimentava.   

De longe João Francisco observava a menina Bárbara que na porta da moenda providenciava o acerto da troca enquanto sofridos escravos faziam a moedura dos grãos. A menina Bárbara estava de férias e era afilhada do dono da fazenda e, da moenda. Ela estudava farmácia em Ouro Preto e iria se formar naquele ano. Era linda, muito linda. Bárbara e João Francisco cresceram juntos naquelas colinas.   

Ainda menina o padrinho dela inventou esta ideia de estudar e ela foi levada, sobre lombo de burros, pela estrada poeirenta para a cidade de Ouro Preto. Raramente ela voltava ali.   

Esta semana seria uma época especial, pois seu padrinho, João Fernandes, estava doando uma terra ao distrito, ao lado do Rio Matipó, na sua reta maior, para se iniciar um povoado. Seria feita uma comemoração e Bárbara viera para a festa.  

João Francisco nunca mais a tinha visto, embora desejasse isso todos os dias e noites de sua vida.  Cresceram juntos, brincaram juntos, estudaram juntos na pobre escolinha da colina.  

João Francisco se apaixonou por ela.  

Sua imagem linda, embora longe e sem se lembrar de um pobre coitado como ele, não saía de sua mente. Ela nem imaginava o que se passava nos pensamentos e nos sentimentos dele.   

João Francisco a recordava caminhando perigosamente em alta velocidade em pelo de cavalo, sem arreio, sem sela. Ela, lembrava ele, parecia uma deusa ou uma fada cavalgando nos pastos de capim gordura desfilando e desafiando as altas colinas. Das altas colinas uma brisa fria descia e balançava seus cabelos de rebeldes cachos amarelos.  Brilhantes   cabelos cor do sol lindamente a deslizar em seu rosto angelical.   

Ela viu João Francisco na fila e foi até ele cumprimentá-lo.  Ele sentiu vergonha de si mesmo. O perfume dela nunca se afastou dele. Ele se lembrou de quando eram crianças e ela o ensinava a escrever. As suaves mãos dela conduzindo as suas, grosseiras e desajeitas, a ensinar-lhe a escrever o bê-á-bá e o a-b-c. Seu simpático sorriso largo, sempre lindo, continuava a lhe enfeitar o rosto.   

Como é difícil tentar esquecer esta paixão de sua vida. Como é difícil pensar em esquecer aqueles dias lindos. João Francisco não deixa de pensar nela e, a cada dia parece que seu amor aumenta mais, como também aumenta a distância entre eles. Ele continua sem cultura e ela cada vez mais estudada. Ele não devia tê-la amado. Acha até que foi atrevido e irresponsável quando o fez, mas, é tarde demais agora para controlar o seu coração. Ela se aproveitou de sua simplicidade, enfiou suas lindas mãos em seu peito amolecido e de lá arrancou seu coração, cravou-lhe uma flecha e o entregou a um anjo pequenino que o escondeu ao longe das colinas azuis.   

Um amor doentio tomou conta de seu ser e, aquele amor proibido estava ali, era ela. Ela foi até ele. Ele estava sujo e cheirava mal pelo suor do trabalho desde madrugada alta. Ela, elegantemente vestida com roupas de cidade, suavemente perfumada, olhos cheios de vida e o mesmo lindo sorriso largo. Ele não sabia se ficava feliz se contentando só com aquilo ou frustrado e triste por não merecer mais.  Ela tocou as suas mãos calejadas e sujas, fazendo o seu coração explodir de amor. Ela lhe perguntou como estava ele. Ele respondeu com respeito e educação. O seu já falecido pai lhe ensinara a conversar bem.

Quando eram crianças, lá na escolinha da serra, antes de Bárbara ir para a cidade grande, enquanto brincavam, ela o corrigia e o ensinava a falar. Também lia os livros do monsenhor João Facunto Chaves que, antes da construção da primeira capela, vinha algumas vezes rezar missa na casa grande da fazenda. Nos horários das missas, no terreiro descalço, eles se amontoavam sentados no chão puro juntos com índios Puris e velhos escravos doentes para ouvir a palavra de Deus.   

        Voltando à realidade conversaram um pouco e ela voltou para a sua atividade na moenda.    

        Chegou a vez do milho de João Francisco ser moído, e foi...  

         Após pegar o pó de milho que a autoridade lhe delegava em troca pelo trabalho da barulhenta moenda movida por água corrente, ele saiu, deixou em casa junto com um maço de couve que  pegara na casa de seu Monteiro em troca de um punhado do pó de milho que  levava. Seu Monteiro mandou que Maria Francisca lhe desse uma cuia d'água para lhe abrandar a sede. Ela, enquanto derramava a água fresca na cuia de coité, olhava João Francisco emocionada e desejosa. Ela gostava dele e, gosto fazia toda a sua família para o casamento. Ele não conseguia dar a ela nenhuma esperança, pois, o seu amor impossível era todo de Bárbara. Ela dizia que se João Francisco não a quisesse de verdade ela iria para o convento ser freira.  

         João Francisco pegou a sua vara de pescar, arrancou com o enxadão algumas espertas minhocas no quintal e caminhou rápido por entre o mato e o capim alto para pescar lambari  no rio que se formava no desaguar de uma cachoeira das proximidades. Sabiás selvagens cantavam alegremente em seus ninhos no pé de angá. Canários- da-terra embelezavam a tarde com seu lindo cântico enquanto suas fêmeas colhiam pequenas minhocas nos barrancos do riacho barulhento. Dois filhotes de coelhos brincavam no capim alto indiferentes ao cansaço do dia que findava e à noite que se anunciava linda. Ainda era crepúsculo. O anoitecer chegava e, lentamente, empurrava o sol para detrás dos montes azuis.

         Quando ele estava chegando, ouviu risos no remanso da cachoeira. Caminhou rápido afastando frágeis ramas de bambu e viu dois jovens índios puris agachados e olhando excitadamente ansiosos. Voltou-se para o lago do remanso e viu duas moças nuas nadando indiferentes a tudo e a todos. Uma delas era Bárbara e, a outra, uma escrava da família que lhe servia de dama de companhia, tão moça quanto Bárbara. Ele já as vira outras vezes ali se banhando. Sentiu um ciúme infernal e partiu para cima dos índios para impedi-los de continuar olhando e travaram uma briga tamanha. Enquanto ele lutava com um deles, o outro correu e, roubando as roupas das duas moças e, fugindo silenciosamente, ele sumiu capoeira adentro. João Francisco e o outro índio puri se machucaram muito e saíram se xingando. O índio que com ele lutava, também correu mato adentro esquecendo e deixando para trás uma fieira grande de lambari que havia pescado. Enquanto isso, um menino escravo já buscara novas roupas para elas na casa grande da fazenda.  

João Francisco voltou para casa onde a sua mãe o esperava com o complemento do jantar. Ele limpou bem limpo lambari por lambari e os fritou bem fritinhos na quente banha de porco. Um gostoso mingau de couve, cuscuz de milho e lambari frito foi o jantar.  Seus irmãos eram amigos, felizes e brincalhões. Conversavam bastante e davam muitas risadas.  Comiam com vontade e, com gostosa fartura, aquela comida pobre.  

 João Francisco acendeu as lamparinas de azeite. Sentou-se com a sua viola de pinho numa pedra junto ao terreiro. Músicas lindas e apaixonadas saltavam das cordas de sua viola. As doces melodias se espalhavam molhadas pelo sereno da noite do lugar e voavam com o vento seguindo rumo à imensidão. Parecia até que as estrelas "lumiavam" mais o chão e se afastavam para deixar a lua cheia o olhar mais de perto.   

De repente, João Francisco foi abordado por um policial o intimando a ir ao posto policial para depor. Um índio puri o denunciara como se ele tivesse roubado as roupas de Bárbara e de sua escrava no remanso da cachoeira. João Francisco negou tudo e não aceitou assinar o depoimento. Apanhou muito do policial, ficou todo marcado de borrachadas do cassetete do policial, mas, não assinou. Ficou preso naquela noite, todo doído e sangrando, mas não assinou por uma coisa que não havia feito.   

Pela manhã o policial, o mesmo, só havia ele no povoado de São João do Rio Matipó, abriu a porta da cadeia e o soltou praguejando ameaças por ele ter se negado a assinar o depoimento. João Francisco já estava  na rua poeirenta quando, da porta da cadeia, o policial gritou com voz firme e alta:  

__Agradeça à madame Bárbara, pois, foi ela que lhe mandou soltar.   

Curiosos o rodeavam e comentavam seus machucados e a sua humilhação. Chorando, a sua santa mãe veio recebê-lo e o escorou na volta para casa. Ao passar pela porteira que dá acesso ao terreiro ele desmaiou. Desesperados ela e dois de seus irmãos o carregaram até o barraco e o deitaram em uma rede limpa. Trocaram cuidadosamente a sua roupa ensanguentada e cobriu as lesões com uma pasta de confrei.   

A notícia se espalhou pelo povoado. Seus amigos vieram visitá-lo. Todos o conheciam bem e, mais, sabiam do seu amor pela filha da Casa Grande. Apostavam que não fora ele. Um deles chegou a questionar por que ele não reagiu e não lutou com o policial. Teria sido pior e ele teria que fugir, pois, outros policiais, certamente, seriam enviados da "freguesia" de Abre Campo a ajudá-lo a manter a ordem e o respeito à autoridade.   

João Francisco já se sentia bem por não ter assinado o depoimento no mal escrito livro de registros e ocorrências.   

Neste instante chegou uma escrava de Bárbara com uma "encomenda" para ele. Disse a escrava:  

__A senhorita Bárbara ficou sabendo do ocorrido e mandou este chá que ela mesma fez para voismicê. É uma decocção de confrei com água e vinho e serve para sarar a dor e a inflamação. 

 João Francisco agradeceu e a escrava saiu apressada. Mesmo antes de tomar aquele chá ele já se sentiu melhor. Fora feito e mandado pela sua amada. Ela fora a causa da sua prisão e das suas lesões. Parecia que se importava com João Francisco, o que lhe fazia muito bem saber.  

          Continuava a vida como Deus a determinou. Já dois anos haviam se passado. Alguns alqueires de terra foram doados pelo padrinho de Bárbara ao longo do trajeto mais reto do rio Matipó. Ali se construiu uma capela, que levou todo este tempo para ficar pronta, em homenagem a São João.

 

          Na construção da capela João Francisco trabalhou duro, como voluntário, ao lado de alguns amigos, sem nada receber. Trabalhavam às noites, sábados e domingos, até deixarem pronta a capela de São João Batista. Monsenhor João Facunto Chaves passou a rezar diariamente na capela e não só ocasionalmente como fazia antes na Casa Grande da fazenda.  

         Era junho, época de festas juninas, dia de São João, e uma grande festa foi preparada para aquele sábado. Bárbara já estava formada e trabalhava no lugarejo. Vários amigos dela vieram da cidade grande em lindos cavalos marchadores e estavam hospedados na Casa Grande da fazenda. João Francisco morria de ciúmes dos amigos dela e chegava a se deprimir e a se odiar por não ter qualidades para disputar o seu amor.  

         Fora uma grande festa. Bandeirolas coloridas de papéis cortados, amarradas em barbantes entrelaçados, completavam um cenário festivo. Ao fundo o mastro, com a imagem de São João Batista, personalizava a comemoração. De muito longe, da Diocese de Mariana, vieram a banda de música e os congados, sendo todos os instrumentos transportados por tropa de burro e os músicos e dançarinos em lindos cavalos de raça. Ficaram todos hospedados na fazenda de seu João Fernandes. Doía-lhe novamente o ciúme de sua desejada Bárbara pelos rapazes que se hospedavam na casa de seu padrinho onde ela costumava frequentar.  

         Grandes valetas foram cavadas no solo onde troncos se queimavam em brasa assando centenas de grandes pedaços de boi transfixados por espetos de bambu. Todos do povoado comiam sem economia aquela oferenda do padrinho de Bárbara. Sanfoneiros se postavam noite adentro no ritmo de músicas de época. Violeiros apaixonados faziam as cordas de seus instrumentos levarem as suas mensagens de amor   às caipiras virgens do lugar.  Até mesmo João Francisco mandou a sua mensagem, não só tocando, mas, também cantando. As cantatas dele eram juras de amor para a sua doce Bárbara que nem ali estava. Talvez bastante ocupada com os seus convidados na casa grande da fazenda.    

          No dia seguinte foi o tempo de se recuperar da ressaca da festa. Ninguém faltou à missa das dez naquele lindo domingo de sol. João Francisco e seus cinco irmãos, juntamente com a sua mãe, voltavam famintos para casa depois da demorada homilia (como dizia o padre).            

          Quando estavam atravessando a porteira, quase foram atropelados por vários cavaleiros. Talvez uns sete ou oito, não se sabe ao certo, que passaram em disparada gritando desesperados que estavam sendo perseguidos por uma onça. Assim como chegaram sumiram na curva do morro. Logo em seguida uma linda voz conhecida passou a galope, em seu cavalo de raça, gritando loucamente por socorro. Logo atrás, a perseguí-la, uma onça pintada gigantesca, rugia seu ruído mais ensurdecedor. O cavalo de Bárbara tropeçou atirando-a no poeirento chão de terra batida deixando-a à sua sorte, frente ao gigantesco e faminto felino. Era ela, a Bárbara bela tão amada e desejada, tentando se levantar. A onça, ameaçadora, caminhava lentamente em sua direção estremecendo o terreiro com seu rugido mais forte. Necessitando matar a sua fome, o gigantesco felino já tinha certo a sua desprotegida e fácil refeição. Angustiado, João Francisco não sabia o que fazer. Ele não podia perder a sua amada mesmo ela o desconhecendo e, já que era desconhecido, por que continuar vivo. Ele só tinha um facão na cintura. Quando deu por si já estava pulando em cima da onça e, quase irresponsavelmente, agarrando-a pelo pescoço e deferindo-lhe repetidas facadas com toda a força de seus musculosos braços. Atirado ele foi ao chão e pareceu sentir o peso daquele feroz animal sangrento a lhe morder os braços e o tórax. João Francisco gritava de dor com as mordidas da pintada, mas, não deixava de desferir nela repetidas e certeiras facadas. Já quase desfalecido, ouviu-se um tiro e o gigantesco animal caiu morto em cima dele.   

          Quando deu por si, ele estava em uma cama de verdade (nunca havia deitado numa), na casa grande. Alguém lhe dera banho e a sua amada farmacêutica cuidava de suas feridas. Com linhas comuns bem fervidas, ela "costurou" as suas lesões maiores. O mesmo amassado de folhas de confrei era usado nas feridas. Repetidas doses de chá quente de confrei com água e vinho lhe eram dadas. Compressas de água tentaram lhe aliviar a febre. Por muitos dias permanecera desfalecido e, conforme lhe contaram depois, delirando com a febre que teimava em não ceder. A farmacêutica Bárbara não se desligava dele. João Francisco sentiu medo que, em seus delírios, lhe tenha mencionado o nome. Quando teve condições de ir embora vários dias depois, quero dizer muitas semanas depois, João Francisco agradeceu envergonhado por não ter como pagar. João Fernandes lhe respondeu:  

         __ Meu amigo, meu amigo. Se aqui alguém tem que pagar alguma coisa somos nós. Você se arriscou para salvar da morte certa a minha menina Bárbara. Os amigos dela lá da cidade correram todos e a abandonaram à própria sorte. Se não fosse o Chico caçador você teria morrido. Fiquei tão emocionado com sua atitude que dei um pedaço de minha terra para sua mãe plantar uma horta e criar alguns porcos e cabras. Mandei fazer também uma casa decente para vocês com quartos grandes e camas para todo mundo. Tudo isso é muito pouco pelo que você fez por nossa família. Vá com Deus.  

         E continuou ainda seu João Fernandes:  

          __ Que mais eu posso fazer por você em agradecimento?  

João Francisco olhou fixamente nos olhos de Bárbara a quem só por prêmio poderia pretender o seu coração, se quisesse um. Não bastava só ele a querer. Também não seria bom se ela o quisesse por dó, por compaixão ou por agradecimento.  

         Um carro de duas juntas de bois o levou para casa, agora um pouco mais longe. A sua mãe estava com ele. Não saíra de seu lado durante todas aquelas semanas. Alguma parte de seu corpo ainda doía quando entrou em sua casa nova, que era bem bonita e confortável. A sua mãe merecia e, também os seus irmãos. Eles já, enquanto João Francisco estava moribundo, plantaram verduras e legumes na horta. Já ordenhavam as cabras e o milho engordava três porcos no chiqueiro. Galinhas corriam pelo quintal que não era pequeno. Teriam uma vida mais segura e tranquila, se  soubessem manipular o que lhes foi dado. Certamente saberiam, pois queriam melhorar de vida. Ele, sua mãe e seus irmãos estavam constrangidos de aceitar “aquele” pagamento em troca da vida da afilhada do fazendeiro.  

          Depois de mais recuperado eles foram lá conversar com João Fernandes, padrinho de Barbara e dono da fazenda, sobre o constrangimento que a doação lhes causou.  Saíram de lá convencidos de que aquilo não era nada frente à fortuna do seu João Fernandes, sem falar no sacrifício de quase morte de João Francisco. Voltaram para casa menos desconfortados.  

         No dia seguinte era domingo. Um frio domingo de fim de inverno. Chovia. Chovia muito. Enxurrada e barro lamacento dificultavam a todos de caminhar pelas ruas descalças. Mesmo assim não faltaram na missa da capela. Monsenhor João Facunto Chaves fez uma linda homilia. Ao final da missa ele pediu aos fiéis que rezassem em agradecimento a Deus pelo restabelecimento de João Francisco. Ele ficou emocionado pela vibrante oração daqueles amigos humildes.   

          João Francisco deixou que todos saíssem. Permaneceu ajoelhado. Ainda sentindo alguma dor, rezou ao seu santo protetor em agradecimento não só pela sua vida, mas, pela gratidão do padrinho de sua amada de facilitar a vida de sua mãe e de seus irmãos.   

          Monsenhor João Facunto, quando saía, foi até onde ele estava, sentou-se ao seu lado com o cuidado para não interromper a sua oração. João Francisco falou primeiro:  

         __ Obrigado monsenhor pela linda oração por minha recuperação. Fiquei emocionado com a resposta de nosso povo acompanhando a sua reza.  

        __ Meu filho, meu filho... Somos todos irmãos. Além disso, você é um filho de Deus e, saiba, um filho de Deus muito especial, muito amado, muito querido por nosso povo.  

        __ Padre, o Senhor me conhece desde menino. Muito raramente o Senhor vinha rezar missa aqui, ainda no terreiro da casa grande da fazenda, e eu sempre estava lá aprendendo a “falar certo” como o senhor dizia. Como o senhor me conhece sabe que eu não estou confortável com o pagamento que seu João Fernandes deu à minha família pelo que aconteceu.  

        __Não, não! Claro que não! Ele nada lhe pagou, pelo contrário. Pelo contrário meu filho, ele enganou você e tentou abafar seus nobres sentimentos. Eu estava a todo o momento ao seu lado, durante todo o período mais grave de seu restabelecimento. A febre parecia querer consumir você. Você delirava e falava alto e, em todo momento, você declarava a sua paixão por Bárbara. Delirando você descrevia cada facada que dava na grande onça pintada e sempre gritando que amava Bárbara e que não a deixaria ser ferida ou maltratada. Sua amada Bárbara não saía de seu lado e ela chorava muito quando ouvia o nome dela de sua boca. Seu João Fernandes, com o prêmio que deu, só quis compensar e afastar de você outras futuras pretensões. Se você realmente gosta de Bárbara, se você quer de verdade a sua amada, meu filho, só tem um caminho. Vá para a cidade grande estudar.  

         __Como, monsenhor? Como?  

         __Só depende de você querer. Tenho amigos em Ouro Preto que podem lhe dar um ofício e, ao mesmo tempo, lhe abrir horário para estudar. Agora você pode provar que ama Bárbara de verdade. Estudado você estará no mesmo nível dela. Seus irmãos já têm facilidade para se virarem sozinhos. E, você se formando, poderá ajudá-los mais tarde, certo?  

         __Vou conversar com meus irmãos e com a minha mãe e volto a falar com o senhor.  

         João Francisco voltou para casa e, no trajeto de volta, a sua mente trabalhava a proposta do padre. Pela tarde, Bárbara passou na casa dele para revisar os seus ferimentos. Estavam ótimos. Ela aproveitou para opinar sobre a sua ida para a cidade grande para estudar. Ela até lhe deu o nome de um ourives e joalheiro amigo dela dizendo que ele não deixaria de ajudá-lo. Já ali mesmo escreveu uma carta de apresentação. Ela lhe desejou boa sorte e foi embora.  

 Sabendo que poderia ser mesmo mais uma maneira de se aproximar de Bárbara, tendo cultura igual à dela, podendo conversar no nível que o dela, João Francisco decidiu ir. Também, depois de formado, poderia ajudar os seus irmãos e descansar a sua mãe da lida diária.  

Enfrentou uma aventura até então desconhecida. Uma longa viagem em um burro de carga que a igreja lhe emprestara. Enfrentou poeira e chuva pelo caminho. O monsenhor lhe dera algum dinheiro para ele pernoitar em alguma pousada nas noites daquela longa jornada, mas, ele preferiu guardá-lo para usar em seus estudos.   

Ele foi muito bem recebido pelos amigos de Bárbara. Parece que ela era mesmo muito querida deles. Passaram a tratá-lo como herói quando souberam do seu feito para salvá-la.  

          João Francisco estudou e trabalhou muito. Terminou o segundo grau e ingressou na Escola de Minas e se formou em engenharia.  

          Voltou para casa depois de oito anos. Encontrou todos bem em sua casa. Todos estavam muito felizes e orgulhosos com a sua formatura. João Francisco ficou alegre porque todos progrediam no trabalho na roça e cresciam junto com o crescimento do povoado de São João de Matipó.

            Ele teve medo de perguntar pela sua adorada Bárbara. Não esperaram pela sua pergunta. A sua mãe disse que ela se casara. O nosso novo Engenheiro se calou. Ele não deveria sentir isso, mas, chegou a ter muita tristeza, uma enorme frustração, na verdade, ódio. Perdeu a fome e agradeceu quando a sua mãe o chamou para almoçar. Entrou para o banheiro para que ninguém o visse chorar. Banhou-se para tirar o pó do caminho.  

          Tentou esquecer e descansar um pouco e não conseguiu. Montou seu cavalo de raça trotador, sim, agora ele tinha um. Foi até a capela agradecer ao Monsenhor por ter feito dele um engenheiro.   

Enquanto o seu cavalo o conduzia pelas ruas da vila, ele programava voltar para Ouro Preto. Não tinha mais o que fazer ali.   

Observava, passando pelas ruas, melhorias no comércio local. Pode ver uma loja de roupas, uma venda de secos e molhados. Em um bar, alguns antigos amigos jogavam sinuca e saíram à porta para o verem passar curiosos. Certamente não o conheceram. Voltaria ali depois para cumprimentá-los, pois, certamente eram conhecidos. Todos o eram quando saiu para estudar, pelo menos a maioria deles.  

          __Padre!  

Chamou a meia distância, pois ele conversava com alguém debaixo de uma das duas grandes árvores que tinha na praça da capela. Monsenhor João Facunto se levantou, virou-se ajeitando os óculos que lhe davam uns ares engraçados. Ao reconhecer João Francisco apressou-se a alcançá-lo.  

          __Meu filho, meu filho, que saudades. Todos os dias destes oitos anos eu perguntava por você, eu rezava por você.  

          __Obrigado padre por tudo que o senhor fez por mim. Sou um engenheiro de Minas graças ao seu incentivo, graças ao seu apoio. Isso sem falar do dinheiro que me emprestou para despesas pelo caminho e a mula que me deu para me levar junto com minha mala de roupas até Ouro Preto. Aqui tem um dinheiro, tome. Acho que dá para pagar seu empréstimo e a mula, não?  

          __Não quero meu filho. Dê à sua mãe e aos seus irmãos.  

          __Não, padre, eles não precisam mais. Progrediram muito depois que ganharam a terra para plantar e estão bem. Pode pegar padre. Fica para as obras da capela. 

          __Tudo bem, João Francisco. Se você insiste tanto, vou aceitar para as obras da paróquia. 

           __Agora, padre, quero que me abençoe para eu tirar de meu coração este quase ódio que nele se instalou por Bárbara ter se casando com outro.  

          E duas lágrimas atrevidas deslizaram pelo seu rosto bem barbeado, exatamente bem barbeado para encontrar a sua amada que agora pertencia a outro homem e ele nem mais a poderia ver!  

          __Não meu filho, não meu filho. Não necessita eu abençoar você para trocar por compreensão o ódio que se instalou em seu peito. Na verdade, tudo de bom que aconteceu com você e sua família foi a menina Bárbara que colaborou para acontecer. Por favor, trate de esquecê-la, pois, está casada e o fez diante deste altar de Deus e só a morte pode liberá-la deste juramento, você sabe disso.  

          __Como assim padre?  

          __Vamos enumerar? Você foi preso e maltratado injustamente pelo sumiço da roupa dela e ela se condoeu e o mandou soltar. Você lutou bravamente com aquela onça e quase morreu. Você o fez por amor. Você sofreu e, tentando afugentar você de Bárbara, seu João Fernandes, padrinho dela, fez o que fez para a sua família que, como você mesmo diz, está progredindo na terra própria. Agora, convenhamos você não foi à busca de cultura porque eu ajudei. Você não se firmou em Ouro Preto pela carta de Bárbara ao amigo joalheiro dela. Você foi empurrado para Ouro Preto em busca de melhorar sua posição social e ter mais condições de lutar pelo seu amor. Logo, meu amigo, você subiu na vida graças a seu amor por Bárbara. Volte para Ouro Preto e busque outro amor, continue progredindo na vida.  

          __Com quem Bárbara se casou?  

         __Acho que não deveria saber. Vá embora. Esqueça esta moça. O que importa com quem ela se casou?  

          __Eu vou sim, padre, mas, diga-me o nome dele. Eu preciso saber. Se o senhor não me disser eu vou perguntar a ela e será pior.  

          __Muito bem, meu filho. Por capricho do destino ela se casou com um índio. Um índio Puri. O mesmo índio Puri que roubara a roupa de Bárbara naquela tarde no remanso das pedras redondas da cachoeira. Você por culpa dele, naquele dia, foi espancado e preso.  

          __E eles vivem bem?  

          __Vá embora, meu filho. Isto não é da sua conta...  

          __Pela sua resposta eles não vivem bem, não é?  

          __Sim, eu não deveria lhe contar isso, pois, vai fazer você sofrer e não é você que conseguirá consertar isso. Ele é uma pessoa má, alcoólatra, agressivo, não trabalha e, sem nenhuma classe, sem nenhuma cultura. Não sei por que a nossa pequena Bárbara foi se envolver com uma pessoa deste nível. Ele vive na venda de Sr. Norim se embriagando.  

         __Mas, ele não a agride certo?  

   

          __Agride sim. Muitas vezes ela foi agredida por ele.  

         __Padre do céu, por que ele tolera isso, me diga?  

         __Ela é uma verdadeira cristã, meu filho. Não se envolva nisso. Volte para Ouro Preto, vá viver a sua vida profissional que será linda. Não fique aqui, vá embora!  

          __É isso que significa ser cristã? Ou cristão? Ela tem que se submeter ao sofrimento para provar que é cristã? Não creio no que estou ouvindo, padre. Que Deus é este? Este Deus não é aquele que me ensinou no catecismo. O Deus que eu aprendi não quer que as pessoas sofram. Desculpe padre. Vou embora sim, pois jamais vou concordar com isso. Como o senhor disse, eu não vou conseguir mudar isso. Volto amanhã para Ouro preto. Abençoe-me, monsenhor. Antes de partir, volto para me despedir.  

          __­­Vá com Deus, meu filho. Dê lembranças à sua mãe. Diga aos seus irmãos que eu não os vejo na capela. Apenas vejo sua mãe. Deus os quer aqui.  

          __Eu direi padre.  

João Francisco voltou pensativo trotando o seu cavalo marchador. Doía-lhe o coração pelo sofrimento de Bárbara. Resolveu andar pelo povoado para ver as mudanças que tanto falavam que tinham acontecido. De longe ele observou uma farmácia. Caminhou até lá. Era a farmácia de Bárbara. Desceu do cavalo e o continuou puxando pela rédea e caminhando em direção à farmácia. Entrou. Ela, assim que o viu, fugiu para dentro. Chegou a ver seu braço na tipoia e um olho muito roxo. João Francisco a chamou e não foi atendido. Ela o reconheceu e não quis ser vista naquele estado.

João Francisco voltou triste para casa. No trajeto de volta ele mudou de ideia e foi até a venda do Sr. Norim. Desceu do cavalo e o amarrou em um travessão apropriado na porta. Alguns amigos o cumprimentaram. O marido de Bárbara sentado em um saco de arroz, recostado ao balcão de tijolos sem reboco levantou o mini copo de aguardente e o levou à boca num gole só. Quando viu João Francisco levantou-se e foi logo o insultando:  

          __Olha só quem está aqui. Está bem seu almofadinha, hein?  Olha aí gente, ele agora é doutô, doutô da cidade grande. Quer tomar uma pinga “seu” doutô?  Sua amada, que voismicê nunca conseguiu namorar é agora a minha muié, sabia? Minha muié! Nunca mais vai ser sua, entendeu seu almofadinha? Minha muié. Eu pago uma pinga pra voismicê pra comemorar. “Seu” Norim bota uma pinga “prele”.  

“Seu” Norim obedeceu e colocou um mini copo de pinga no balcão. João Francisco o pegou, levantou-o até a boca e voltou a colocá-lo no balcão e disse com voz firme e tendo todos a olhá-lo:  

        __Eu ainda gosto de uma pinguinha. Eu vou tomar esta pinga para comemorar seu casamento, mas, eu vou pagar.  

E, tirando o dinheiro da algibeira o colocou sobre o balcão. E completou:  

         __Não posso aceitar um brinde de um homem que bate na mulher...  

O índio puri se levanta, pega o mini copo no balcão e atira a pinga no rosto de João Francisco. A aguardente arde em seus olhos e o ódio em seu coração. Assim que ele coloca o copo no balcão de tijolos crus João Francisco o pega e o atira violentamente no rosto do índio Puri.  Conseguiu atingi-lo em plena região de supercílio direito com um ferimento que sangra muito. Pareceu querer desfalecer com o impacto do lançamento, mas, recuperou-se rapidamente. Saiu praguejando furioso e gritando para João Francisco não se meter com a família dele. Depois de secar o rosto da pinga nele atirada, João Francisco voltou para casa.  

          O jantar estava pronto. Agora ele estava com fome. O episódio na “venda” abriu o seu apetite. Que saudade da comidinha de sua mãe. Cheirava na cozinha o frango ensopado com lobrobô (ora-pro-nóbis) A fumaça do fogão à lenha misturava-se à fumaça do caldeirão de arroz e da vasilha de mandioca cozida. João Francisco pediu desculpas à sua mãe, mas, não resistiu ao ver aquelas linguiças secas na fumaça penduradas em cima do fogão e teve que matar a saudade e comer um bom pedaço assado na brasa.  

Era noite alta e João Francisco tocava a sua viola no terreiro tendo como plateia, no chão, cabras e vacas, e no céu, as mesmas estrelas disputando com a lua um espaço no escuro do céu. De repente vieram gritando que o índio puri acabara de matar a sua esposa e fugira para a serra de malacacheta. João Francisco largou a viola, pegou o seu cavalo e correu até a casa grande. Deu de ombros empurrando curiosos ali aglomerados e, estirada no chão da varanda, deparou com a sua sempre pretendida Bárbara, morta. O peito com várias perfurações de faca e o sangue, que tanto desejou amar, tingindo o chão de tábuas de braúna por onde escorria. Ajoelhou-se sobre aquele sangue e, em um choro incontrolável, abraçou pela primeira vez aquele corpo que tanto desejou, querendo, talvez, trocar de lugar com ela. Seu sangue, ainda escorrendo, molhava o peito dele que não cabia de dor e ódio. Levantou-se com os punhos serrados e gritou com toda a força que o ódio lhe permitia:  

         __Índio puri, desgraçado. Você destruiu minha vida, seu maldito dos demônios. Eu vou buscar você seu canalha. Vou até o inferno. Eu vou trazer você arrastado pelo rabo do meu cavalo de onde você estiver até aqui e farei você lamber este sangue sagrado de minha amada Bárbara.  

E num salto rápido pulou na cela de seu cavalo e correu noite adentro subindo e descendo morros e logo o alcançou correndo a pé pelas encostas brilhantes de malacacheta. Quando viu que era realmente ele, João Francisco gritou enfurecido:  

          __Seu índio desgraçado, volte aqui seu covarde, venha bater em alguém de seu tamanho.  

          __Quer morrer também seu almofadinha da cidade grande? Então morra.  

         Estranhamente, João Francisco ouviu dois tiros e viu seu cavalo correndo de volta e, viu também o seu corpo rolando pela encosta. Ele correu até o seu corpo e o seu corpo estava morto. Não viu mais o índio. Não viu mais as minas de malacacheta. Não viu mais a noite.Não se viu mais...  

A vida terrena de João Francisco acabara ali. Naquela mesma madrugada, ainda fugindo a pé, o índio sentou-se em um cupim para descansar, foi picado por uma cobra jararaca e morreu.  

Parece que o espírito de João Francisco estava apenas esperando a morte de seu assassino. Assim que o índio foi morto pela cascavel, ele voltou a se ver, mas, não na terra. Ele se viu em uma gigantesca escadaria de prata que parecia flutuar e ser carregada por também gigantescas nuvens brancas. Ali, onde flutuava, ele não conseguia sentir ódio. Dali ele podia ver, como em um filme, cenas do mundo inteiro que não conhecia. Conseguia ver a dor de sua família, na terra, sendo consolada por anjos do céu. Mas, outros anjos, pequeninos, o despertaram para a nova vida que, agora, seria eterna. Outros anjinhos trouxeram até ele o espírito de Bárbara. Estava linda, chegou com o seu sorriso largo. Deram-se as mãos, beijaram-se intensamente e continuaram subindo, juntos, as escadarias do céu.