quarta-feira, 3 de abril de 2024

 

O TEMPO MODIFCOU A VIDA DELA

ESTE É UM CONTO DE AFRANIO BASTOS QUE FARÁ PARTE DE UMA COLEÇÃO QUE SERÁ LANÇADA EM BREVE, CHAMADA: “Contos que encantam”

 

 

          O nome dela é Melissa. Ela chegou a Santos com cinco anos de idade. Ela e seus pais adotivos.  Não tinha outros parentes.

           Seus pais foram mortos em um latrocínio covarde quando ela tinha dezesseis anos. Quando recebeu do médico, Dr. Arantes, a confirmação que seus pais já chegaram mortos ao Hospital ela, chorando, esmurrou o peito dele muitas vezes. Enquanto o fazia, ela gritava o chamando de assassino e incompetente.

         Ela sentiu não conseguir viver sem nenhum parente e, após doar uma linda casa e um bom seguro de vida deixados por seus pais, para uma instituição de caridade, tentou se matar se atirando na frente de um carro em alta velocidade.

          Ficou muito grave, muito tempo no Hospital, na UTI, mas, foi salva pelo médico que ela desprezou um tanto. Quando recebeu alta do Hospital ela desapareceu. O médico já se sentia responsável por ela e, teve medo de que ela tivesse se matado. Depois de muito procurar a descobriu em um convento, em Minas Gerais, na grande região metropolitana de Belo Horizonte.

         Dr. Arantes tentou encontrá-la, mas, ela fugia dele. Ele ficou em um Hotel próximo ao Convento e, em vão. Por várias vezes tentou falar com ela e não conseguiu. Ela e outras Noviças do Convento faziam muita caridade nos bairros pobres. Certo dia, tentando separar uma briga de dois mendigos, ela foi muitas vezes esfaqueada e, novamente quase morreu em uma UTI. Novamente foi salva pelo Dr. Arantes.

        Ela tentou fugir do médico por muitas vezes. Mas, não conseguiu. Não conseguiu, pois, desde o primeiro dia em que o viu tentando salvar os seus pais, ela se apaixonou por ele. E, ele que acreditava apenas a estar protegendo, também estava perdidamente apaixonado por aquele anjo feito moça, feito mulher. Só depois que se casou com ele é que ela descobriu estar se casando com um médico dono de uma fortuna que jamais conseguiria gastar. Ela chorou muito lembrando de sua infância pobre no Nordeste do Brasil. Ela chorava copiosamente e se negava a contar para o seu marido, a razão daquele choro doído. Mas, Dr. Arantes não podia ter uma esposa que se negava a lhe contar algo que a fazia sofrer. Qundo estavam em lua de mel em Paris. Depois de seu marido muito insistir, ela contou a sua vida, o seu passado.

           __Nós morávamos no sertão nordestino. Longe de tudo, perto do nada. Convivíamos com a seca por um tempo e, menos seca em outro tempo curto. Fora da seca meus pais plantavam, criavam galinhas, porcos e cabras. Tínhamos o que comer e vender. Ao lado de nosso casebre, um casal de amigos também morava em uma choupana. Eles nos ajudavam nas criações e plantações. Tinham três meninas trigêmeas. Éramos muito amigas. Nós quatro tínhamos a mesma idade. A seca nos penalizava quando chegava, mas, sabíamos que ela iria embora.  Uma época, a seca não quis ir embora. Ficou. E, tornou a ficar e, não foi mais embora. Nada nascia na terra judiada pelo sol, Nem galinhas, nem cabras nem porcos tínhamos mais. Passámos fome. Quando tínhamos algo a comer, meus pais fingiam que comiam e deixavam para mim. Os dois morreram de inanição e, tuberculose, eu acho. Os pais de minhas amiguinhas me adotaram. Levaram-me para dividir com eles o que não tinham. Pensaram em nos levar dali, mas, não tiveram tempo. Uma onda de infecção intestinal, uma a uma, matou as minhas irmãs adotivas. Quando meus pais adotivos se deram conta de que a seca havia vindo para não mais sair, estávamos quase mortos também, de sede, de fome, de revolta e de saudades de nossos mortos. Sem conseguir raciocinar muito, pois, nem energia tínhamos para tanto, saímos pela estrada poeirenta em busca de algo, ou de nada. Antes de sair eu me ajoelhei nas sepulturas de minhas amiguinhas irmãs e, chorando lágrimas que a desidratação quase não me deixava ter, eu pedi a elas que nos guiassem e nos protegessem, pois, a Deus eu não tinha mais o que pedir.

          Com a sede e a fome a nos enfraquecer a mente e as penas, ainda conseguimos andar por dois dias. Não conseguiríamos mais dar um passo sequer. Caímos na margem da estrada quase desfalecidos. Neste momento passou uma velha camionete que poderia nos dar carona, mas, não o fez. Alguns metros à frente ela parou. Alguém desceu dela no lado do carona e, na margem, no capim seco deixou alguma coisa e, buzinando forte, foi embora. O meu pai adotivo uniu um restinho de força que talvez ainda tivesse e foi ver o que era. Eram garrafas de água, frango assado e batatas fritas, queijo e goiabada e, uma garrafa de leite. Há muito não comíamos e tivemos que fazê-lo com vagar.

          Assim, com mais energia, conseguimos chegar a uma grande cidade do Nordeste. Na estação ferroviária, meu pai trabalhou por algum tempo, carregando malas e, recebendo por isso, encaminhava passageiros para hotéis que o haviam contratado. Já não passávamos fome. Morávamos em uma pensão simples, mas, melhor não necessitaria ser. Depois de alguns meses, juntando dinheiro de seu trabalho, viemos para Santos. Eu cheguei aqui com cinco anos de idade. Logo meus pais conseguiram trabalho. Melhoraram de emprego em pouco tempo. Conseguiram me educar... morreram como você sabe.  Essa, meu marido, é o meu passado. Agora quero saber o seu...

          __Antes de contar o meu passado, depois de ouvir o seu, eu posso chorar?

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Este conto foi tirado do livro do mesmo autor, Afranio Bastos, chamado ”OS PORTÕES DO CÉU”