domingo, 28 de abril de 2024

 

Eu só quero amar...

 

          Enrico, estudante da sexta série do ensino fundamental, muito tímido, obesidade mórbida e, para complicar a sua timidez, ele era um péssimo aluno em quase todas as matérias, exceto em português. Em português ele era muito bom. Fazia cada redação linda, de causar inveja.

          Enrico sofria muito bullyng. Colegas covardes, irresponsáveis, sem educação familiar, sem religiosidade e sem respeito humano, o criticavam pela obesidade, pela timidez, por ser um mal aluno. Também, em caso contrário, quando era elogiado pelos professores em seu desempenho em português, ele era também vítima de repetidas humilhações. O pior do bullying é que um grupo de colegas faz a sua irresponsabilidade e, são animados a continuar porque um outro grupo ri e acha “graça”. Chamavam-no de “burro gordo”, chorão (às vezes chorava de tristeza), às vezes chutavam as suas nádegas, catavam o seu material escolar e o espalhavam pelo pátio da escola, cada um que por ele passava dava-lhe repetidos “tapinhas” na cabeça

          Era algumas vezes impedido de frequentar algum evento nas dependências da escola, agredido com palavras humilhantes e vexatórias. Dias e mais dias, semanas e mais semanas, meses e mais meses, de humilhação sem fim levaram Enrico a não ir mais às aulas. Ele saía de casa e não ia para o colégio. A diretoria avisava aos seus pais, mas, ele se recusava a dizer por que não estava indo. Sempre tentava esconder as humilhações a que era submentido. Um dia em uma festa cívica do colégio ele foi tão humilhado que se sentou na calçada e começou a chorar.  Nesta hora uma colega da mesma turma veio ao seu socorro. Ela sentou-se ao seu lado, acariciou os seus cabelos, secou as lágrimas dele, mas, sempre em silêncio. Ficou apenas esperando que ele parasse de chorar. Como ele era muito tímido, não sabia como se portar diante dela. Era a garota mais linda do colégio. Eram da mesma turma desde que entraram na Pré-Escola. Em virtude de sua timidez e, por se achar feio, ele nunca se atreveu a se aproximar dela. Mas, o perfume daquela beleza de garota pareceu lhe confortar, sem nada falar.

          __Eu vou para casa. Nunca mais vou sair de casa. Se meus pais me obrigarem a voltar para o colégio, eu vou me atirar na frente do trem. Thau, Ayami.

          __Enrico, eu posso ir com você?

          __Não, Ayami. Não pode. Você vai contar para os meus pais e, eles vão continuar me humilhando.

          __Não, não vou. Eu vou com você para proteger você daqueles malvados. Eu sempre ficava muito triste quando os via humilhando você. Muitas vezes eu os denunciei na diretoria, eles eram chamados pelo diretor, mas, nada acontecia. Eles continuavam tirando sarro de você e, até agredindo você física e moralmente.

         __Como você pretende me defender. Você é uma criança como eu. Temos apenas dez anos de idade...

          __Confie em mim. Agora vou até à sua casa e vou pedir a sua mãe para deixar você estudar comigo em minha casa, depois do almoço. Podemos brincar, jogar xadrez, fazer dever de casa. E todo dia eu vou buscar você para ir à escola. Você estando comigo, eles não vão maltratar você.

          Ele se recusou, pois, tinha vergonha. Caminhou sozinho para casa. Às gargalhadas, três garotos correram atrás dele. Ele tentou correr. Tropeçou e caiu. Quando tentou se levantar ele foi empurrado por um dos garotos e caiu novamente. Assim que Enrico caiu pela segunda vez, Ayami impediu que outro garoto o chutasse. Segurando um dos dedos de uma das mãos do pequeno malfeitor, ela aplicou um golpe tão doloroso que o moleque se ajoelhou de dor e, até fez xixi na calça. Sem nada entender os outros dois tentaram agarrá-la e, sem novamente entenderem, foram lançados ao solo com a maior facilidade. Sem soltar o dedo do que estava ajoelhado de dor, com outros golpes de karate, Ayami voltou a rechaçar nova tentativa de agressão dos outros dois meliantes mirins. Eles correram e deixaram o seu “amigo” ajoelhado no chão gemendo de dor. Sem largar o dedo do pequeno meliante Ayami o avisou de que, daquela hora em diante, ela estaria de olho neles e que não os deixaria maltratar mais ninguém. Após ser solto, ele também saiu correndo. Sem olhar para Enrico, Ayami também correu para casa. Enrico ficou se perguntando, como ela fizera aquilo. Foi também para casa.

          Após o almoço Ayami chegou na casa de Enrico e, mesmo sabendo que inicialmente ele não concordara. Conforme havia sugerido antes, ela pediu à mãe dele para deixá-lo estudar com ela na casa dela, pois, estava com dificuldade em português e, poderiam fazer todos os deveres escolares. A mãe dele gostou muito, pois, ele não gostava de estudar, nunca levava os deveres e, sempre tinha reclamações das professoras.  Enrico, todo envergonhado, preferiria não ter que ir, mas, não teve como deixar de acompanhar a sua colega. Todo desajeitado, todo gordão que mal conseguia caminhar, não conseguia entender por que uma garota tão linda como aquela japonesinha (era assim que a conheciam) estava colado no seu pé naquele dia.  Ela era a garota mais bela do colégio. Filha de pai japonês nato e, mãe sueca, também nata, aos quatro anos de idade, em um concurso de mídia internacional, ela fora eleita a criança mais linda do mundo. A beleza dela era disputada por capas de livros e revistas. Ela era garota propaganda.

          __ Ayami, eu posso lhe fazer uma pergunta?

          __Claro que pode Enrico. Mas, eu acho que já sei o que você vai perguntar. Se é isso que você está pensando, eu não estou ajudando você. É você que está me ajudando.

          __Como assim? Não entendi...

          __Não tem nada para entender. Você não tem amigos e, eu, também não os tenho. Eu estou estudando xadrez e necessito de alguém para jogar comigo. Eu aprendi Karatê e não tenho quem treinar comigo...

          __Mas, Ayami, eu sou gordo, feio, desajeitado e, na nossa turma existem muitos melhores do que eu, não?

          __Você não é idiota, você é educado, você é humilde e, embora seja muito gordo, desajeitado, você não é feio não... você tem um coração lindo e, um rosto mais lindo ainda.

          __Como você fez aquilo com aqueles meninos hoje pela manhã?

          __Não importa. Eu odeio aqueles garotos do mal. Você não vai fugir deles, nunca mais. Eu sempre vou estar do lado de você...

          A tarde foi muito proveitosa. Eles estudaram, fizeram os deveres escolares, tentaram jogar xadrez e, até Caratê que, até então, ele apenas ouvira falar. Era final de sexta feira. Durante todo o sábado e o domingo eles, na casa de Ayami, fizeram as mesmas coisas. Na escola, na segunda feira, eles chegaram e permaneceram juntos durante todo o tempo. Alguém perguntou se o “gordo burro” necessitava de guarda costa feminina...

          __Eu não sou guarda costa dele, ele sim é o meu namorado.

          Os pestinhas riram. Os imbecis de “plantão”, também. Durante a aula, Ayami viu quando alguém jogou uma maçã na cabeça de Enrico. Novamente risos na sala de aula. Ayami se levantou foi até o mesmo garoto que ela, na sexta feira anterior quase teve a mão quebrada por ela, agarrou o mesmo dedo que agarrara antes e, segurando firme ordenou que pedisse desculpas bem alto.

        __Diga bem alto: “professora, eu joguei uma maçã na cabeça de Enrico. Perdão Enrico” ... ou vou quebrar o seu dedo.

          __Não, não... pare, está doendo...

          __ Só depende de você... vai doer muito mais...

          __Ai, ai...

          __Vamos, cara!

          __Professora, eu joguei uma maçã na cabeça do Enrico. Perdão Enrico. Perdão Enrico...ai... ai... está doendo.

          A professora saiu de sua mesa e ralhou, nervosa.

          __Ei... ei... o que está acontecendo? Vocês acham que estão na casa de vocês? Ayami, vá para o seu lugar.

          __Ok, professora.

          __Já terminaram de copiar a lição? Terminem rápido, pois, temos outros assuntos a tratar.

          Assim que terminou a aula a pequena gang, cinco alunos no total, todos perversos e malfeitores combinaram de agredir Ayami. O plano dela começava a dar certo, já que, pelo menos naquele momento, eles deixaram Enrico e focaram nela. Ela, quando sentiu o que ia acontecer, já fora da escola e, a caminho de casa, ela pediu a Enrico que fosse embora e a deixasse. Em princípio ele queria ficar para ajudá-la, mas ela o convenceu a ir para casa e atraiu a molecada para uma ruela deserta próximo ao Colégio.

          Eles desconheciam que ela treinava “Karatê” desde muito criancinha. Treinava com os seus familiares (japoneses natos) para defesa pessoal. Apenas defesa. Afinal, essa sempre foi a filosofia “Caratê”. Alguns minutos depois ela saiu da rua deserta deixando os cinco garotos muito assustados e com algumas lesões leves. Eles inicialmente pensaram em pedir aos seus pais para irem à polícia. Desistiram da ideia. Seria vergonhoso cinco meninos apanharem de uma menina.

          Nos dias seguintes, em vários dias seguintes, Enrico não foi mais perturbado. Ayami sabia que não conseguiria defendê-lo por tempos e tempos. Como os pais dele nunca o orientaram como deveriam ter feito, deixavam claro que ele teria que se defender sozinho, Ayami pôs em prática o que já pensava a muito. Levou Enrico para a sua casa, onde permaneceria durante todos os dias. Enrico passou a ir para a sua casa apenas para dormir. Durante o dia, de todos os dias, ele passou a viver a rotina daquela casa. Alimentação saudável, exercícios físicos, estudo de Karatê, xadrez, além de aprender a estudar todas outras disciplinas escolares.

          Amigas questionavam muito Ayami...

          __Ayami, você é uma garota de classe, linda, educada. O que levou você a se afastar de nós, suas amigas, para ficar o tempo todo com aquele gordo feio. Ele é bobão, feião e gordão. O que você vê nele? Tudo isso é por ter pena por ele ser caçoado pelos colegas? Você o ajuda, pois, tem pena dele e, o que ele faz por você? Nada.

          __Ele me ajuda muito mais. Enquanto vocês sempre me criticavam pelo meu distúrbio psiquiátrico.  Meu Transtorno Obsessivo Compulsivo, meu TOC. Ele me ajuda a contorná-lo...

          __Não, minha amiga, o que você tem é apenas mania de perfeição, não é TOC...

          __ Os meus pais também diziam a mesma coisa, até que o médico lhes explicou a diferença. Mania é um conjunto de hábitos que faz, quem os tem, se sentir mais confortável, enquanto o TOC faz você se sentir obrigado a estes hábitos a ponto de se sentir mal se não os repetir. Os hábitos da mania fazem você se sentir confortável, enquanto os hábitos do TOC lhe causam sofrimento.

          __E em que aquele “gordo burro” pode ajudar nisso?

          __Ele me ajuda sem que eu note que estou sendo ajudada. Antes que eu o faça sozinha, ele corrige a posição do tapete da porta da rua, corrige a posição dos qudros na parede, me ajuda a endireitar os pingentes das cortinas. Sem me criticar, sem me questionar ele sempre seca as minhas mãos nas muitas vezes que as lavo.

          __Ele é tão louco como você...

          __Desde criança eu sofro com estes transtornos. Quando eu tinha menos de quatro anos, eu ganhei um cachorrinho de pelúcia. Ele era azul com lindas orelhinhas alaranjadas. Eu amava o meu cãozinho. Ele era o meu amigão. Um dia o meu cãozinho perdeu uma orelhinha. Não sei como. Eu me senti muito mal olhando aquilo. Não estava certo. As pessoas, em vez de me ajudarem a procurar a orelhinha perdida, apenas riam do meu sofrimento. Depois de dois dias sofrendo eu arranquei a outra orelhinha para ficar simétrico. Ficou pior. Eu não podia mais olhar para ele. Eu o joguei fora. Antes, querendo brincar apenas, eu dei banho na minha boneca de papelão. Ela ficou uma massa disforme. Eu me senti muito mal. Eu a enterrei no quintal sem ninguém saber. Durante muitos dias aquela cena roubava alguns minutos de meu sono. Enrico está me ajudando.

          __ Então ele louco igual a você, não?

          __Meus pais gostam dele e me apoiam. Depois que passou a ficar aqui em casa durante todos os dias, ele melhorou muito. Já está mais sociável, melhorou o rendimento escolar...

          __Mas, ele continua gordão, desajeitado e feio...

          __Não, não! O Enrico é muito lindo. Ele apenas está preso naquele corpo gordão desajeitado. Esperem e verão que eu vou tirá-lo daquele corpo que não é dele. Ele tem apenas dez anos e ajuda o meu pai. Já trabalha com o meu pai e vai ganhar dinheiro com isso.

         __Trabalha em que? Aquele gorducho não sabe nada. Só sabe português...KKKKKKKK

         __Pois está trabalhando com isso, com a língua Portuguesa. Vocês sabem, o meu pai, não é brasileiro, é escritor e não sabe bem Portugues e tem que pagar caro para professores corrigirem os seus textos. Com Enrico aqui em casa, a cada página que o meu pai escreve, sem niguém pedir, Enrico já corrige. Inicialmente o meu pai não tinha confiança e continuava enviando seus rascunhos, sem que Enrico soubesse, para os professores corrigirem. Eles devolviam da mesma forma, sem necessidade de correção e, até elogiando alguma expressão literária. Então o meu pai dispensou todos eles e contratou Enrico. Enrico tem umas ideias maravilhosas, modifica alguma expressão e, após ler aquelas modificações, o meu pai adora. Além de saber português para muito além da idade dele, Enrico é poeta. Nossos professores já diziam isso, vocês não esqueceram, ou, se esqueceram?

          __Tudo bem, amiga, pode ficar com o seu gordão, mas, não se afaste de nós, por favor.

          __Pelo contrário, minhas amigas. Eu só fico do lado dele nas horas de estudarmos. Ele não tem mais tempo para ficar comigo. Além de ficar preso nos textos de meu pai, meus tios o põem para correr, nadar, jogar xadrez e aprender lutas de defesa pessoal. Venham para cá também. Participem junto com ele.

         __Não, não... quando você estiver livre, nós viremos buscar você. Preferimos andar de bicicleta, ir à praia, ir ao shopping... não ganhamos nada aqui, mas, nada disso que podemos fazer juntas, não tem graça sem você.

          __Tudo bem minhas amigas. Eu também sinto saudades de vocês. Não iremos nos separar. Eu amo vocês!

          __Podemos ir agora, dar uma volta, tomar um sorvete, pisar na água da praia?

          __Claro que sim. Vamos...

          E elas saíram passeando felizes e, às gargalhadas.

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          O tempo passou muito rápido. Mesmo não querendo isso, todos cresceram, entraram cada um deles para a Faculdade que melhor lhes agradasse.  No dia da festa de formatura do Segundo Grau, ao receber o diploma, cada aluno fazia um agradecimento a quem quisesse. Muitos deles marcantes e emocionantes. Enrico, agora magrinho e bonitão como Ayami prometera às amigas transformá-lo, também teve que fazer o seu depoimento.

          __Obrigado aos meus pais por me deixarem amar vocês... Obrigado professores por me tolerarem...Obrigado aos colegas que no primeiro grau me “zoavam”, me “humilhavam”, me “agrediam moralmente, psicologicamente e, às vezes, até fisicamente” ... graças a vocês, hoje eu sou o que sou... Obrigado, Ayami por ter me protegido de meus agressores e, muito mais, graças à sua proteção, hoje eu sou um escritor de sucesso, um campeão de xadrez e Caratê... Graças a você eu comecei ajudando o seu pai a corrigir os textos que ele escrevia, pois, sendo Japonês, o seu Português não era bom. Depois de alguns anos eu comecei, com a ajuda dele, a publicar os meus próprios escritos.  Hoje, meus textos são publicados em português e, em japonês.  Amigos, eu sei que estou prolongando muito, mas, em público, sem pedir licença a ela, eu vou fazer uma pergunta a uma menina moça, tão linda, tão sensual que nem sei, por que ela vive apenas ajudando as pessoas e, nunca a vi se interessar por ninguém, nunca a vi com namorado. Ela tem todo direito de responder ou não. Ela sabe de quem eu estou falando...

         Todos se entreolharam, ninguém nada disse, ninguém nada entendeu...

         Outros alunos fizeram o seu agradecimento. Chegou a vez de Ayami...

          __Eu não necessito dizer “obrigado” a ninguém... A cada segundo de minha vida, todos que me são caros, todos sentiram em mim, gratidão em meu coração e, em meu comportamento. Mas, eu também tenho que me prolongar para responder ao nosso herói, Enrico. Meu colega, eu nunca tive pena de você... eu sempre tive e sempre terei, revolta de pessoas que se põem a humilhar outras pessoas apenas para serem aplaudidos por idiotas iguais a eles. (Aplausos prolongados) ... ainda não terminei (mais aplausos prolongados) ... obrigada, obrigada... ainda respondendo ao meu “amigo” (a voz dela saiu embargada) ... eu não tenho o direito de achar que seria eu aquela menina moça a quem você se referiu... mas, eu posso responder por ela...  eu nunca tive um namorado, eu nunca “saí” com nenhum namorado, porque, desde muito tempo, desde criança, desde o tempo em que você era gordo e feio, sempre, em todos os momentos de minha vida, eu sonhei estar com você...Em todos os momentos eu trabalhei para tirar você daquele corpo que não era seu... você jamais desconfiou Enrico... você quer ser o meu amor? Eu amo você. 

        Enquanto aplausos e emoções prolongadas mudavam o sentido daquela comemoração, Enrico subiu ao palco e se beijaram louca e apaixonadamente...

 

          fim

quarta-feira, 3 de abril de 2024

 

O TEMPO MODIFCOU A VIDA DELA

ESTE É UM CONTO DE AFRANIO BASTOS QUE FARÁ PARTE DE UMA COLEÇÃO QUE SERÁ LANÇADA EM BREVE, CHAMADA: “Contos que encantam”

 

 

          O nome dela é Melissa. Ela chegou a Santos com cinco anos de idade. Ela e seus pais adotivos.  Não tinha outros parentes.

           Seus pais foram mortos em um latrocínio covarde quando ela tinha dezesseis anos. Quando recebeu do médico, Dr. Arantes, a confirmação que seus pais já chegaram mortos ao Hospital ela, chorando, esmurrou o peito dele muitas vezes. Enquanto o fazia, ela gritava o chamando de assassino e incompetente.

         Ela sentiu não conseguir viver sem nenhum parente e, após doar uma linda casa e um bom seguro de vida deixados por seus pais, para uma instituição de caridade, tentou se matar se atirando na frente de um carro em alta velocidade.

          Ficou muito grave, muito tempo no Hospital, na UTI, mas, foi salva pelo médico que ela desprezou um tanto. Quando recebeu alta do Hospital ela desapareceu. O médico já se sentia responsável por ela e, teve medo de que ela tivesse se matado. Depois de muito procurar a descobriu em um convento, em Minas Gerais, na grande região metropolitana de Belo Horizonte.

         Dr. Arantes tentou encontrá-la, mas, ela fugia dele. Ele ficou em um Hotel próximo ao Convento e, em vão. Por várias vezes tentou falar com ela e não conseguiu. Ela e outras Noviças do Convento faziam muita caridade nos bairros pobres. Certo dia, tentando separar uma briga de dois mendigos, ela foi muitas vezes esfaqueada e, novamente quase morreu em uma UTI. Novamente foi salva pelo Dr. Arantes.

        Ela tentou fugir do médico por muitas vezes. Mas, não conseguiu. Não conseguiu, pois, desde o primeiro dia em que o viu tentando salvar os seus pais, ela se apaixonou por ele. E, ele que acreditava apenas a estar protegendo, também estava perdidamente apaixonado por aquele anjo feito moça, feito mulher. Só depois que se casou com ele é que ela descobriu estar se casando com um médico dono de uma fortuna que jamais conseguiria gastar. Ela chorou muito lembrando de sua infância pobre no Nordeste do Brasil. Ela chorava copiosamente e se negava a contar para o seu marido, a razão daquele choro doído. Mas, Dr. Arantes não podia ter uma esposa que se negava a lhe contar algo que a fazia sofrer. Qundo estavam em lua de mel em Paris. Depois de seu marido muito insistir, ela contou a sua vida, o seu passado.

           __Nós morávamos no sertão nordestino. Longe de tudo, perto do nada. Convivíamos com a seca por um tempo e, menos seca em outro tempo curto. Fora da seca meus pais plantavam, criavam galinhas, porcos e cabras. Tínhamos o que comer e vender. Ao lado de nosso casebre, um casal de amigos também morava em uma choupana. Eles nos ajudavam nas criações e plantações. Tinham três meninas trigêmeas. Éramos muito amigas. Nós quatro tínhamos a mesma idade. A seca nos penalizava quando chegava, mas, sabíamos que ela iria embora.  Uma época, a seca não quis ir embora. Ficou. E, tornou a ficar e, não foi mais embora. Nada nascia na terra judiada pelo sol, Nem galinhas, nem cabras nem porcos tínhamos mais. Passámos fome. Quando tínhamos algo a comer, meus pais fingiam que comiam e deixavam para mim. Os dois morreram de inanição e, tuberculose, eu acho. Os pais de minhas amiguinhas me adotaram. Levaram-me para dividir com eles o que não tinham. Pensaram em nos levar dali, mas, não tiveram tempo. Uma onda de infecção intestinal, uma a uma, matou as minhas irmãs adotivas. Quando meus pais adotivos se deram conta de que a seca havia vindo para não mais sair, estávamos quase mortos também, de sede, de fome, de revolta e de saudades de nossos mortos. Sem conseguir raciocinar muito, pois, nem energia tínhamos para tanto, saímos pela estrada poeirenta em busca de algo, ou de nada. Antes de sair eu me ajoelhei nas sepulturas de minhas amiguinhas irmãs e, chorando lágrimas que a desidratação quase não me deixava ter, eu pedi a elas que nos guiassem e nos protegessem, pois, a Deus eu não tinha mais o que pedir.

          Com a sede e a fome a nos enfraquecer a mente e as penas, ainda conseguimos andar por dois dias. Não conseguiríamos mais dar um passo sequer. Caímos na margem da estrada quase desfalecidos. Neste momento passou uma velha camionete que poderia nos dar carona, mas, não o fez. Alguns metros à frente ela parou. Alguém desceu dela no lado do carona e, na margem, no capim seco deixou alguma coisa e, buzinando forte, foi embora. O meu pai adotivo uniu um restinho de força que talvez ainda tivesse e foi ver o que era. Eram garrafas de água, frango assado e batatas fritas, queijo e goiabada e, uma garrafa de leite. Há muito não comíamos e tivemos que fazê-lo com vagar.

          Assim, com mais energia, conseguimos chegar a uma grande cidade do Nordeste. Na estação ferroviária, meu pai trabalhou por algum tempo, carregando malas e, recebendo por isso, encaminhava passageiros para hotéis que o haviam contratado. Já não passávamos fome. Morávamos em uma pensão simples, mas, melhor não necessitaria ser. Depois de alguns meses, juntando dinheiro de seu trabalho, viemos para Santos. Eu cheguei aqui com cinco anos de idade. Logo meus pais conseguiram trabalho. Melhoraram de emprego em pouco tempo. Conseguiram me educar... morreram como você sabe.  Essa, meu marido, é o meu passado. Agora quero saber o seu...

          __Antes de contar o meu passado, depois de ouvir o seu, eu posso chorar?

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Este conto foi tirado do livro do mesmo autor, Afranio Bastos, chamado ”OS PORTÕES DO CÉU”