domingo, 28 de abril de 2024

 

Eu só quero amar...

 

          Enrico, estudante da sexta série do ensino fundamental, muito tímido, obesidade mórbida e, para complicar a sua timidez, ele era um péssimo aluno em quase todas as matérias, exceto em português. Em português ele era muito bom. Fazia cada redação linda, de causar inveja.

          Enrico sofria muito bullyng. Colegas covardes, irresponsáveis, sem educação familiar, sem religiosidade e sem respeito humano, o criticavam pela obesidade, pela timidez, por ser um mal aluno. Também, em caso contrário, quando era elogiado pelos professores em seu desempenho em português, ele era também vítima de repetidas humilhações. O pior do bullying é que um grupo de colegas faz a sua irresponsabilidade e, são animados a continuar porque um outro grupo ri e acha “graça”. Chamavam-no de “burro gordo”, chorão (às vezes chorava de tristeza), às vezes chutavam as suas nádegas, catavam o seu material escolar e o espalhavam pelo pátio da escola, cada um que por ele passava dava-lhe repetidos “tapinhas” na cabeça

          Era algumas vezes impedido de frequentar algum evento nas dependências da escola, agredido com palavras humilhantes e vexatórias. Dias e mais dias, semanas e mais semanas, meses e mais meses, de humilhação sem fim levaram Enrico a não ir mais às aulas. Ele saía de casa e não ia para o colégio. A diretoria avisava aos seus pais, mas, ele se recusava a dizer por que não estava indo. Sempre tentava esconder as humilhações a que era submentido. Um dia em uma festa cívica do colégio ele foi tão humilhado que se sentou na calçada e começou a chorar.  Nesta hora uma colega da mesma turma veio ao seu socorro. Ela sentou-se ao seu lado, acariciou os seus cabelos, secou as lágrimas dele, mas, sempre em silêncio. Ficou apenas esperando que ele parasse de chorar. Como ele era muito tímido, não sabia como se portar diante dela. Era a garota mais linda do colégio. Eram da mesma turma desde que entraram na Pré-Escola. Em virtude de sua timidez e, por se achar feio, ele nunca se atreveu a se aproximar dela. Mas, o perfume daquela beleza de garota pareceu lhe confortar, sem nada falar.

          __Eu vou para casa. Nunca mais vou sair de casa. Se meus pais me obrigarem a voltar para o colégio, eu vou me atirar na frente do trem. Thau, Ayami.

          __Enrico, eu posso ir com você?

          __Não, Ayami. Não pode. Você vai contar para os meus pais e, eles vão continuar me humilhando.

          __Não, não vou. Eu vou com você para proteger você daqueles malvados. Eu sempre ficava muito triste quando os via humilhando você. Muitas vezes eu os denunciei na diretoria, eles eram chamados pelo diretor, mas, nada acontecia. Eles continuavam tirando sarro de você e, até agredindo você física e moralmente.

         __Como você pretende me defender. Você é uma criança como eu. Temos apenas dez anos de idade...

          __Confie em mim. Agora vou até à sua casa e vou pedir a sua mãe para deixar você estudar comigo em minha casa, depois do almoço. Podemos brincar, jogar xadrez, fazer dever de casa. E todo dia eu vou buscar você para ir à escola. Você estando comigo, eles não vão maltratar você.

          Ele se recusou, pois, tinha vergonha. Caminhou sozinho para casa. Às gargalhadas, três garotos correram atrás dele. Ele tentou correr. Tropeçou e caiu. Quando tentou se levantar ele foi empurrado por um dos garotos e caiu novamente. Assim que Enrico caiu pela segunda vez, Ayami impediu que outro garoto o chutasse. Segurando um dos dedos de uma das mãos do pequeno malfeitor, ela aplicou um golpe tão doloroso que o moleque se ajoelhou de dor e, até fez xixi na calça. Sem nada entender os outros dois tentaram agarrá-la e, sem novamente entenderem, foram lançados ao solo com a maior facilidade. Sem soltar o dedo do que estava ajoelhado de dor, com outros golpes de karate, Ayami voltou a rechaçar nova tentativa de agressão dos outros dois meliantes mirins. Eles correram e deixaram o seu “amigo” ajoelhado no chão gemendo de dor. Sem largar o dedo do pequeno meliante Ayami o avisou de que, daquela hora em diante, ela estaria de olho neles e que não os deixaria maltratar mais ninguém. Após ser solto, ele também saiu correndo. Sem olhar para Enrico, Ayami também correu para casa. Enrico ficou se perguntando, como ela fizera aquilo. Foi também para casa.

          Após o almoço Ayami chegou na casa de Enrico e, mesmo sabendo que inicialmente ele não concordara. Conforme havia sugerido antes, ela pediu à mãe dele para deixá-lo estudar com ela na casa dela, pois, estava com dificuldade em português e, poderiam fazer todos os deveres escolares. A mãe dele gostou muito, pois, ele não gostava de estudar, nunca levava os deveres e, sempre tinha reclamações das professoras.  Enrico, todo envergonhado, preferiria não ter que ir, mas, não teve como deixar de acompanhar a sua colega. Todo desajeitado, todo gordão que mal conseguia caminhar, não conseguia entender por que uma garota tão linda como aquela japonesinha (era assim que a conheciam) estava colado no seu pé naquele dia.  Ela era a garota mais bela do colégio. Filha de pai japonês nato e, mãe sueca, também nata, aos quatro anos de idade, em um concurso de mídia internacional, ela fora eleita a criança mais linda do mundo. A beleza dela era disputada por capas de livros e revistas. Ela era garota propaganda.

          __ Ayami, eu posso lhe fazer uma pergunta?

          __Claro que pode Enrico. Mas, eu acho que já sei o que você vai perguntar. Se é isso que você está pensando, eu não estou ajudando você. É você que está me ajudando.

          __Como assim? Não entendi...

          __Não tem nada para entender. Você não tem amigos e, eu, também não os tenho. Eu estou estudando xadrez e necessito de alguém para jogar comigo. Eu aprendi Karatê e não tenho quem treinar comigo...

          __Mas, Ayami, eu sou gordo, feio, desajeitado e, na nossa turma existem muitos melhores do que eu, não?

          __Você não é idiota, você é educado, você é humilde e, embora seja muito gordo, desajeitado, você não é feio não... você tem um coração lindo e, um rosto mais lindo ainda.

          __Como você fez aquilo com aqueles meninos hoje pela manhã?

          __Não importa. Eu odeio aqueles garotos do mal. Você não vai fugir deles, nunca mais. Eu sempre vou estar do lado de você...

          A tarde foi muito proveitosa. Eles estudaram, fizeram os deveres escolares, tentaram jogar xadrez e, até Caratê que, até então, ele apenas ouvira falar. Era final de sexta feira. Durante todo o sábado e o domingo eles, na casa de Ayami, fizeram as mesmas coisas. Na escola, na segunda feira, eles chegaram e permaneceram juntos durante todo o tempo. Alguém perguntou se o “gordo burro” necessitava de guarda costa feminina...

          __Eu não sou guarda costa dele, ele sim é o meu namorado.

          Os pestinhas riram. Os imbecis de “plantão”, também. Durante a aula, Ayami viu quando alguém jogou uma maçã na cabeça de Enrico. Novamente risos na sala de aula. Ayami se levantou foi até o mesmo garoto que ela, na sexta feira anterior quase teve a mão quebrada por ela, agarrou o mesmo dedo que agarrara antes e, segurando firme ordenou que pedisse desculpas bem alto.

        __Diga bem alto: “professora, eu joguei uma maçã na cabeça de Enrico. Perdão Enrico” ... ou vou quebrar o seu dedo.

          __Não, não... pare, está doendo...

          __ Só depende de você... vai doer muito mais...

          __Ai, ai...

          __Vamos, cara!

          __Professora, eu joguei uma maçã na cabeça do Enrico. Perdão Enrico. Perdão Enrico...ai... ai... está doendo.

          A professora saiu de sua mesa e ralhou, nervosa.

          __Ei... ei... o que está acontecendo? Vocês acham que estão na casa de vocês? Ayami, vá para o seu lugar.

          __Ok, professora.

          __Já terminaram de copiar a lição? Terminem rápido, pois, temos outros assuntos a tratar.

          Assim que terminou a aula a pequena gang, cinco alunos no total, todos perversos e malfeitores combinaram de agredir Ayami. O plano dela começava a dar certo, já que, pelo menos naquele momento, eles deixaram Enrico e focaram nela. Ela, quando sentiu o que ia acontecer, já fora da escola e, a caminho de casa, ela pediu a Enrico que fosse embora e a deixasse. Em princípio ele queria ficar para ajudá-la, mas ela o convenceu a ir para casa e atraiu a molecada para uma ruela deserta próximo ao Colégio.

          Eles desconheciam que ela treinava “Karatê” desde muito criancinha. Treinava com os seus familiares (japoneses natos) para defesa pessoal. Apenas defesa. Afinal, essa sempre foi a filosofia “Caratê”. Alguns minutos depois ela saiu da rua deserta deixando os cinco garotos muito assustados e com algumas lesões leves. Eles inicialmente pensaram em pedir aos seus pais para irem à polícia. Desistiram da ideia. Seria vergonhoso cinco meninos apanharem de uma menina.

          Nos dias seguintes, em vários dias seguintes, Enrico não foi mais perturbado. Ayami sabia que não conseguiria defendê-lo por tempos e tempos. Como os pais dele nunca o orientaram como deveriam ter feito, deixavam claro que ele teria que se defender sozinho, Ayami pôs em prática o que já pensava a muito. Levou Enrico para a sua casa, onde permaneceria durante todos os dias. Enrico passou a ir para a sua casa apenas para dormir. Durante o dia, de todos os dias, ele passou a viver a rotina daquela casa. Alimentação saudável, exercícios físicos, estudo de Karatê, xadrez, além de aprender a estudar todas outras disciplinas escolares.

          Amigas questionavam muito Ayami...

          __Ayami, você é uma garota de classe, linda, educada. O que levou você a se afastar de nós, suas amigas, para ficar o tempo todo com aquele gordo feio. Ele é bobão, feião e gordão. O que você vê nele? Tudo isso é por ter pena por ele ser caçoado pelos colegas? Você o ajuda, pois, tem pena dele e, o que ele faz por você? Nada.

          __Ele me ajuda muito mais. Enquanto vocês sempre me criticavam pelo meu distúrbio psiquiátrico.  Meu Transtorno Obsessivo Compulsivo, meu TOC. Ele me ajuda a contorná-lo...

          __Não, minha amiga, o que você tem é apenas mania de perfeição, não é TOC...

          __ Os meus pais também diziam a mesma coisa, até que o médico lhes explicou a diferença. Mania é um conjunto de hábitos que faz, quem os tem, se sentir mais confortável, enquanto o TOC faz você se sentir obrigado a estes hábitos a ponto de se sentir mal se não os repetir. Os hábitos da mania fazem você se sentir confortável, enquanto os hábitos do TOC lhe causam sofrimento.

          __E em que aquele “gordo burro” pode ajudar nisso?

          __Ele me ajuda sem que eu note que estou sendo ajudada. Antes que eu o faça sozinha, ele corrige a posição do tapete da porta da rua, corrige a posição dos qudros na parede, me ajuda a endireitar os pingentes das cortinas. Sem me criticar, sem me questionar ele sempre seca as minhas mãos nas muitas vezes que as lavo.

          __Ele é tão louco como você...

          __Desde criança eu sofro com estes transtornos. Quando eu tinha menos de quatro anos, eu ganhei um cachorrinho de pelúcia. Ele era azul com lindas orelhinhas alaranjadas. Eu amava o meu cãozinho. Ele era o meu amigão. Um dia o meu cãozinho perdeu uma orelhinha. Não sei como. Eu me senti muito mal olhando aquilo. Não estava certo. As pessoas, em vez de me ajudarem a procurar a orelhinha perdida, apenas riam do meu sofrimento. Depois de dois dias sofrendo eu arranquei a outra orelhinha para ficar simétrico. Ficou pior. Eu não podia mais olhar para ele. Eu o joguei fora. Antes, querendo brincar apenas, eu dei banho na minha boneca de papelão. Ela ficou uma massa disforme. Eu me senti muito mal. Eu a enterrei no quintal sem ninguém saber. Durante muitos dias aquela cena roubava alguns minutos de meu sono. Enrico está me ajudando.

          __ Então ele louco igual a você, não?

          __Meus pais gostam dele e me apoiam. Depois que passou a ficar aqui em casa durante todos os dias, ele melhorou muito. Já está mais sociável, melhorou o rendimento escolar...

          __Mas, ele continua gordão, desajeitado e feio...

          __Não, não! O Enrico é muito lindo. Ele apenas está preso naquele corpo gordão desajeitado. Esperem e verão que eu vou tirá-lo daquele corpo que não é dele. Ele tem apenas dez anos e ajuda o meu pai. Já trabalha com o meu pai e vai ganhar dinheiro com isso.

         __Trabalha em que? Aquele gorducho não sabe nada. Só sabe português...KKKKKKKK

         __Pois está trabalhando com isso, com a língua Portuguesa. Vocês sabem, o meu pai, não é brasileiro, é escritor e não sabe bem Portugues e tem que pagar caro para professores corrigirem os seus textos. Com Enrico aqui em casa, a cada página que o meu pai escreve, sem niguém pedir, Enrico já corrige. Inicialmente o meu pai não tinha confiança e continuava enviando seus rascunhos, sem que Enrico soubesse, para os professores corrigirem. Eles devolviam da mesma forma, sem necessidade de correção e, até elogiando alguma expressão literária. Então o meu pai dispensou todos eles e contratou Enrico. Enrico tem umas ideias maravilhosas, modifica alguma expressão e, após ler aquelas modificações, o meu pai adora. Além de saber português para muito além da idade dele, Enrico é poeta. Nossos professores já diziam isso, vocês não esqueceram, ou, se esqueceram?

          __Tudo bem, amiga, pode ficar com o seu gordão, mas, não se afaste de nós, por favor.

          __Pelo contrário, minhas amigas. Eu só fico do lado dele nas horas de estudarmos. Ele não tem mais tempo para ficar comigo. Além de ficar preso nos textos de meu pai, meus tios o põem para correr, nadar, jogar xadrez e aprender lutas de defesa pessoal. Venham para cá também. Participem junto com ele.

         __Não, não... quando você estiver livre, nós viremos buscar você. Preferimos andar de bicicleta, ir à praia, ir ao shopping... não ganhamos nada aqui, mas, nada disso que podemos fazer juntas, não tem graça sem você.

          __Tudo bem minhas amigas. Eu também sinto saudades de vocês. Não iremos nos separar. Eu amo vocês!

          __Podemos ir agora, dar uma volta, tomar um sorvete, pisar na água da praia?

          __Claro que sim. Vamos...

          E elas saíram passeando felizes e, às gargalhadas.

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          O tempo passou muito rápido. Mesmo não querendo isso, todos cresceram, entraram cada um deles para a Faculdade que melhor lhes agradasse.  No dia da festa de formatura do Segundo Grau, ao receber o diploma, cada aluno fazia um agradecimento a quem quisesse. Muitos deles marcantes e emocionantes. Enrico, agora magrinho e bonitão como Ayami prometera às amigas transformá-lo, também teve que fazer o seu depoimento.

          __Obrigado aos meus pais por me deixarem amar vocês... Obrigado professores por me tolerarem...Obrigado aos colegas que no primeiro grau me “zoavam”, me “humilhavam”, me “agrediam moralmente, psicologicamente e, às vezes, até fisicamente” ... graças a vocês, hoje eu sou o que sou... Obrigado, Ayami por ter me protegido de meus agressores e, muito mais, graças à sua proteção, hoje eu sou um escritor de sucesso, um campeão de xadrez e Caratê... Graças a você eu comecei ajudando o seu pai a corrigir os textos que ele escrevia, pois, sendo Japonês, o seu Português não era bom. Depois de alguns anos eu comecei, com a ajuda dele, a publicar os meus próprios escritos.  Hoje, meus textos são publicados em português e, em japonês.  Amigos, eu sei que estou prolongando muito, mas, em público, sem pedir licença a ela, eu vou fazer uma pergunta a uma menina moça, tão linda, tão sensual que nem sei, por que ela vive apenas ajudando as pessoas e, nunca a vi se interessar por ninguém, nunca a vi com namorado. Ela tem todo direito de responder ou não. Ela sabe de quem eu estou falando...

         Todos se entreolharam, ninguém nada disse, ninguém nada entendeu...

         Outros alunos fizeram o seu agradecimento. Chegou a vez de Ayami...

          __Eu não necessito dizer “obrigado” a ninguém... A cada segundo de minha vida, todos que me são caros, todos sentiram em mim, gratidão em meu coração e, em meu comportamento. Mas, eu também tenho que me prolongar para responder ao nosso herói, Enrico. Meu colega, eu nunca tive pena de você... eu sempre tive e sempre terei, revolta de pessoas que se põem a humilhar outras pessoas apenas para serem aplaudidos por idiotas iguais a eles. (Aplausos prolongados) ... ainda não terminei (mais aplausos prolongados) ... obrigada, obrigada... ainda respondendo ao meu “amigo” (a voz dela saiu embargada) ... eu não tenho o direito de achar que seria eu aquela menina moça a quem você se referiu... mas, eu posso responder por ela...  eu nunca tive um namorado, eu nunca “saí” com nenhum namorado, porque, desde muito tempo, desde criança, desde o tempo em que você era gordo e feio, sempre, em todos os momentos de minha vida, eu sonhei estar com você...Em todos os momentos eu trabalhei para tirar você daquele corpo que não era seu... você jamais desconfiou Enrico... você quer ser o meu amor? Eu amo você. 

        Enquanto aplausos e emoções prolongadas mudavam o sentido daquela comemoração, Enrico subiu ao palco e se beijaram louca e apaixonadamente...

 

          fim

quarta-feira, 3 de abril de 2024

 

O TEMPO MODIFCOU A VIDA DELA

ESTE É UM CONTO DE AFRANIO BASTOS QUE FARÁ PARTE DE UMA COLEÇÃO QUE SERÁ LANÇADA EM BREVE, CHAMADA: “Contos que encantam”

 

 

          O nome dela é Melissa. Ela chegou a Santos com cinco anos de idade. Ela e seus pais adotivos.  Não tinha outros parentes.

           Seus pais foram mortos em um latrocínio covarde quando ela tinha dezesseis anos. Quando recebeu do médico, Dr. Arantes, a confirmação que seus pais já chegaram mortos ao Hospital ela, chorando, esmurrou o peito dele muitas vezes. Enquanto o fazia, ela gritava o chamando de assassino e incompetente.

         Ela sentiu não conseguir viver sem nenhum parente e, após doar uma linda casa e um bom seguro de vida deixados por seus pais, para uma instituição de caridade, tentou se matar se atirando na frente de um carro em alta velocidade.

          Ficou muito grave, muito tempo no Hospital, na UTI, mas, foi salva pelo médico que ela desprezou um tanto. Quando recebeu alta do Hospital ela desapareceu. O médico já se sentia responsável por ela e, teve medo de que ela tivesse se matado. Depois de muito procurar a descobriu em um convento, em Minas Gerais, na grande região metropolitana de Belo Horizonte.

         Dr. Arantes tentou encontrá-la, mas, ela fugia dele. Ele ficou em um Hotel próximo ao Convento e, em vão. Por várias vezes tentou falar com ela e não conseguiu. Ela e outras Noviças do Convento faziam muita caridade nos bairros pobres. Certo dia, tentando separar uma briga de dois mendigos, ela foi muitas vezes esfaqueada e, novamente quase morreu em uma UTI. Novamente foi salva pelo Dr. Arantes.

        Ela tentou fugir do médico por muitas vezes. Mas, não conseguiu. Não conseguiu, pois, desde o primeiro dia em que o viu tentando salvar os seus pais, ela se apaixonou por ele. E, ele que acreditava apenas a estar protegendo, também estava perdidamente apaixonado por aquele anjo feito moça, feito mulher. Só depois que se casou com ele é que ela descobriu estar se casando com um médico dono de uma fortuna que jamais conseguiria gastar. Ela chorou muito lembrando de sua infância pobre no Nordeste do Brasil. Ela chorava copiosamente e se negava a contar para o seu marido, a razão daquele choro doído. Mas, Dr. Arantes não podia ter uma esposa que se negava a lhe contar algo que a fazia sofrer. Qundo estavam em lua de mel em Paris. Depois de seu marido muito insistir, ela contou a sua vida, o seu passado.

           __Nós morávamos no sertão nordestino. Longe de tudo, perto do nada. Convivíamos com a seca por um tempo e, menos seca em outro tempo curto. Fora da seca meus pais plantavam, criavam galinhas, porcos e cabras. Tínhamos o que comer e vender. Ao lado de nosso casebre, um casal de amigos também morava em uma choupana. Eles nos ajudavam nas criações e plantações. Tinham três meninas trigêmeas. Éramos muito amigas. Nós quatro tínhamos a mesma idade. A seca nos penalizava quando chegava, mas, sabíamos que ela iria embora.  Uma época, a seca não quis ir embora. Ficou. E, tornou a ficar e, não foi mais embora. Nada nascia na terra judiada pelo sol, Nem galinhas, nem cabras nem porcos tínhamos mais. Passámos fome. Quando tínhamos algo a comer, meus pais fingiam que comiam e deixavam para mim. Os dois morreram de inanição e, tuberculose, eu acho. Os pais de minhas amiguinhas me adotaram. Levaram-me para dividir com eles o que não tinham. Pensaram em nos levar dali, mas, não tiveram tempo. Uma onda de infecção intestinal, uma a uma, matou as minhas irmãs adotivas. Quando meus pais adotivos se deram conta de que a seca havia vindo para não mais sair, estávamos quase mortos também, de sede, de fome, de revolta e de saudades de nossos mortos. Sem conseguir raciocinar muito, pois, nem energia tínhamos para tanto, saímos pela estrada poeirenta em busca de algo, ou de nada. Antes de sair eu me ajoelhei nas sepulturas de minhas amiguinhas irmãs e, chorando lágrimas que a desidratação quase não me deixava ter, eu pedi a elas que nos guiassem e nos protegessem, pois, a Deus eu não tinha mais o que pedir.

          Com a sede e a fome a nos enfraquecer a mente e as penas, ainda conseguimos andar por dois dias. Não conseguiríamos mais dar um passo sequer. Caímos na margem da estrada quase desfalecidos. Neste momento passou uma velha camionete que poderia nos dar carona, mas, não o fez. Alguns metros à frente ela parou. Alguém desceu dela no lado do carona e, na margem, no capim seco deixou alguma coisa e, buzinando forte, foi embora. O meu pai adotivo uniu um restinho de força que talvez ainda tivesse e foi ver o que era. Eram garrafas de água, frango assado e batatas fritas, queijo e goiabada e, uma garrafa de leite. Há muito não comíamos e tivemos que fazê-lo com vagar.

          Assim, com mais energia, conseguimos chegar a uma grande cidade do Nordeste. Na estação ferroviária, meu pai trabalhou por algum tempo, carregando malas e, recebendo por isso, encaminhava passageiros para hotéis que o haviam contratado. Já não passávamos fome. Morávamos em uma pensão simples, mas, melhor não necessitaria ser. Depois de alguns meses, juntando dinheiro de seu trabalho, viemos para Santos. Eu cheguei aqui com cinco anos de idade. Logo meus pais conseguiram trabalho. Melhoraram de emprego em pouco tempo. Conseguiram me educar... morreram como você sabe.  Essa, meu marido, é o meu passado. Agora quero saber o seu...

          __Antes de contar o meu passado, depois de ouvir o seu, eu posso chorar?

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Este conto foi tirado do livro do mesmo autor, Afranio Bastos, chamado ”OS PORTÕES DO CÉU”

 

 

 

domingo, 24 de março de 2024

 CRIANÇA EXISTE PARA SER FELIZ  



Essa história (ou estória) é uma narração verídica, apenas modificado os nomes dos “personagens’, acontecida em uma pequena cidade de Minas Gerais, na década de sessenta. NAQUELA ÉPOCA AINDA SE PERMITIA TER ANIMAIS EM ESPETÁCULOS DE CIRCO... hoje não mais, felizmente!  

  

  

             

    

 CRIANÇA EXISTE PARA SER FELIZ     

  

  

   Autor; Afranio Bastos  

  

  

  

  Capítulo 1  

  

                    Coração não tem cor  

  

Adilson, esse era o seu nome. Era desse nome que ele gostava de ser chamado. Fora esse o nome que seu pai escolhera e, com tanto orgulho, repetiu com voz grossa no dia do batizado, olhando feliz para a imagem do Cristo no altar da linda "casa de Deus". Mas, não... quem era Adilson? Ninguém sabia. Agora, perguntasse quem era Pelezinho e toda a pequenina cidade saberia responder.  

Pelezinho, moleque esperto, olhos redondos e brilhantes. Narizinho pequeno em cima de uma boca sempre sorridente, cheia de dentes tão lindos de causar inveja em muita gente.  Pelezinho, filho de Juca Preto e Bia Lavadeira, colonos da fazenda do Coronel Joaquim. Pelezinho, sete anos, alegre, brincalhão, muito bem-criado por seus pais pobres, mas, honestos, trabalhadores e muito religiosos. Seus pais muito amados pela comunidade rural e da cidade, tementes a Deus, colonos da fazenda Fortaleza.   

  Fazenda Fortaleza do coronel Joaquim, cabra da peste, muito rico, metia medo em todos os fracos, humildes e desprotegidos. Com seu poderio financeiro e influência política ele comprava as autoridades covardes que fechavam os olhos aos sofrimentos e humilhações impostos aos empregados. Servidores rurais que trabalhavam como escravos sendo, muitas vezes, submetidos até a castigos corporais.  

Como sempre alegre e feliz, contagiava de felicidade quem com ele se encontrasse. Galopando em seu cavalo de pau, correndo pela estrada deixando riscos na poeira alta, Pelezinho voltava para casa. Já não era dia, ainda não era noite, era o crepúsculo, a hora da saudade. A hora em que os corações voltam para seus lares em busca de outros corações que os amem para neles se confortarem.  

Quando se aproximava da fazenda, Pelezinho ouviu os gritos do coronel com seu pai:  

_ Volte aqui seu preto sujo, vagabundo, preguiçoso ou eu corto suas costas com chicote!  

Uma tristeza imensa inundou o coração de Pelezinho. Era muito triste ver seu pai ser humilhado pelo coronel. O pior é que não se podia pedir ajuda. Todos riam e desacreditavam quando se contavam as maldades do coronel, até as autoridades, até o padre.  

  Então, como sempre fazia nas horas de desconforto, Pelezinho correu para a mata onde tinha um esconderijo só seu, onde mergulhava em um mundo diferente, cheio de ilusões, sonhos e fantasias. E ali, chorando, ele adormeceu.  

   

   Capítulo 2  

   

                           Rosilene no Arame  

   

Indiferente à fuga da leoa que causara tanta preocupação durante o dia, a orquestra do circo do “Mosquito” embalava o ritmo de Rosilene. A linda circense, menina moça de causar suspiros, suave como uma pluma, irradiava seu encanto em seu número de malabarismo no arame.   

Mas, a menina estava triste porque a leoa de sua preferência, próximo ao dia de ganhar um filhote, fugira do circo e os homens da cidade a balearam, e ela fugira para a mata.  

Enquanto isso, longe da magia do circo, Pelezinho acordou assustado com um gemido de dor bem próximo do local onde se encontrava. Com medo saiu de seu esconderijo e, cautelosamente, foi procurando na escuridão da mata, de onde viera o gemido. De repente, que susto! A leoa do circo. Grandona, toda suja de sangue, morta, ali pertinho de seu esconderijo. E, choramingando ao seu lado, um lindo filhotinho, tão peludinho, tão fofinho, tão macio.    

 Feliz e emocionado, Pelezinho, com todo cuidado e carinho, pegou o leãozinho e correu para casa para mostrar o seu troféu certo que aquilo tiraria toda a humilhação do coração de seu pai. Nem mesmo se  lembrou que dormira na mata, que era muito tarde e que seus pais poderiam o estar procurando e, preocupados. Dona Bia e “seu” Juca correram aliviados por vê-lo são e salvo. Também acharam lindo o leãozinho, mas, não concordaram em ficar com ele em casa. Eles eram muito pobres, faltava comida até para eles, como poderiam alimentar um leão? Pelezinho pediu, implorou, mas seu pai, educadamente soube fazê-lo entender.   

Pelezinho não desistiu da ideia de ficar com o leãozinho. Voltou com ele para seu esconderijo e deu-lhe o nome de Dunga. No dia seguinte, bem cedinho correu à cidade e foi direto para a Padaria de “seu” Armando:   

_ Seu Armando. Bom dia!  

_ Bom dia Adilson! Como estão seus pais, o Juca e Dona Bia?  

_Vão bem, obrigado. Seu Armando me dá um emprego. Preciso trabalhar.  

_Mas você é muito pequeno para trabalhar...  

_O senhor não precisa me pagar... Eu quero ganhar apenas um litro de leite por dia.  

Imaginando que o leite fosse para ele mesmo, mesmo não necessitando de um empregado “seu” Armando deu o emprego para ele. Ali ele trabalhou até o leãozinho parar de beber leite. A seguir ele se empregou no açougue do "João da Carne" em troca de ossos e restos de carnes e pelancas para alimentar seu amigo Dunga. O leãozinho crescia forte e em segredo de todos. O esconderijo de Pelezinho, na floresta, era uma caverna desconhecida que, se escondia atrás de uma queda de água em uma grota na floresta rala.

   

  Capítulo 3  

   

                            Na escola  

   

Dunga era o nome do leão. Pelezinho já não pensava em outro brinquedo. Só queria brincar com seu amigo que crescia lindo, lindo e cada vez mais amigo. Não procurava outro brinquedo. Seus bois de sabugo se perderam no terreiro... certamente viraram lenha no fogão de Dona Bia. Seu cavalo de pau ficou amarrado à sombra da laranjeira... deve ter morrido... morreu sim. Morreu de fome ou, morreu de sede, ou, simplesmente morreu porque tudo morre com o passar do tempo. Dunga estava ali, grande, forte, bonito, inteligente, obediente, não saia do esconderijo e nem rugia alto preservando assim o segredo de Pelezinho.  

E recomeçaram as aulas. Pelezinho era um bom aluno, estudioso, inteligente. Cumpria rigorosamente com as obrigações escolares e estudava muito. Era, portanto, o melhor aluno da classe e, isto o fazia ser muito invejado e razão de ciúmes vindos dos alunos irresponsáveis.   

Muitos de seus colegas eram ruins, perversos, baderneiros e sem escrúpulos. Tentando humilhar   Pelezinho a todo momento, criticando suas roupas velhas, remendadas (embora limpas), sapatos reusados e, ainda, sempre lembrando, pejorativamente, a sua cor.  

Certo dia, durante uma aula de matemática, os alunos estavam fazendo tanta algazarra que a professora se viu na obrigação de impor-lhes um castigo. Passou na lousa um problema e mandou que resolvessem. Naturalmente só Pelezinho conseguiu acertar o dever. Somente ele pode sair e os demais ficaram de castigo na hora do recreio. Enraivecidos, aqueles pequenos marginais combinaram de bater em Pelezinho na saída da escola. E assim o fizeram. Após a aula mais de quinze meninos começaram a seguir nosso pequeno herói. Logo que notou que estava sendo perseguido, no caminho de volta, Pelezinho sentiu medo e, começou a correr. Os pestinhas também o fizeram e se aproximavam rapidamente de nosso amiguinho que, desesperado de medo, ele corria mais. Já se podia ver a fazenda, mas, a porteira era muito bem trancada e, até que conseguisse abri-la, fatalmente seria alcançado. Apavorado e já chorando Pelezinho desviou seu caminho para a floresta,  correndo mais e mais e, a cada olhada para trás, ele sentia que seus perseguidores estavam mais perto. Lembrou-se, então, de seu Leão. Sim, só seu leão poderia salvá-lo! Correndo ainda mais forte, com os meleques já bem pertinho, reunindo todo o resto da força que ainda tinha, ele gritou como nunca gritara antes, muito alto, forte e misturado com choro e soluços: DUNNGAAAAAAAAAAA!!! Sem nada entender a molecada começou a rir e riram muito e tanto riram que nem notaram o que estava acontecendo. Com um rugido estrondoso fazendo estremecer a terra e paralisar de medo os endiabrados perseguidores, o fiel leão atendeu de imediato ao seu amigo e rápido como um raio, apareceu na estrada ao lado de Pelezinho que rapidamente montou em seu pescoço. Assustados os perseguidores viraram perseguidos e voltaram em uma corrida desenfreada. Perdendo pelo caminho seu material escolar, rapidamente chegaram assustados em suas casas. Tiveram que inventar outra história, pois aquela do leão não convenceria os seus familiares, pois o leão já não estava lá, já que voltara mesmo da estrada.   

No dia seguinte, como se nada tivesse acontecido, todos voltaram à escola. Com o orgulho ferido os pestinhas combinaram de bater em Pelezinho ali mesmo na escola, na hora do recreio. Então, quando sentado em um canto, solitário, comendo uma banana que a professora lhe dera, Pelezinho se viu rodeado dos inimigos que, rindo entre os dentes demonstravam claramente a má intenção. Levantando-se rapidamente, assustado, instintivamente gritou: DUUUNNNGGAAAAAAAAAAA! .... Que confusão! A molecada se debandou desesperada entrando e fechando a primeira porta que apareceu. Quando deram conta estavam dentro da sala da diretoria.   

Apavorados gritaram que tinha um leão lá fora. Todos foram observar pela janela e nada viram a não ser a professora acariciando Pelezinho e, não deram importância.  

Daquele dia em diante, inteligentemente, Pelezinho passou a oferecer ajuda para a professora na saída da escola. Assim, saia sempre com ela e ficava protegido. A professora sabendo o que estava acontecendo aceitava  



Capitulo  4  

   

              Treze de maio de 1888 é agora  (não esquecer que esta estória se passou na década de sessenta)

   

Em sua caverna na mata, junto ao seu amigo Dunga, o leão, deitado na relva, espionado pelo sol, que por entre as árvores mais parecia uma lanterna de país de gigantes, Pelezinho pensava na inocência do povo brasileiro. A cada ano, nas festas escolares, comemora-se a libertação dos escravos no Brasil. Será? Temos professores mal pagos, lixeiros humilhados e discriminados, boias frias, os trabalhadores da construção civil, trabalhadores domésticos sempre com salário de fome. Os colonos lavradores como seu pai, sofrem nas mãos dos patrões. Seu pai e todos os outros colonos da Fazenda Fortaleza sofriam nas mãos do Coronel Joaquim, que os mantinha como quase escravos. Trabalhavam muito, ganhavam pouco e eram obrigados a fazer suas compras semanais no mercadinho da própria fazenda. Como o dinheiro nunca dava eram obrigados a comprar os alimentos por conta e, assim, estavam sempre devendo para o Coronel que nunca perdia a oportunidade de cobrar esta dívida. Como nunca conseguiam pagar a conta se achavam na necessidade de tolerar os desaforos do Coronel.  

  De repente o silêncio foi rompido pela gritaria do coronel que, ao longe se misturavam aos gemidos de dor e pedidos de clemência bem conhecidos de Pelezinho. Estalar de chicotes se misturava aos gritos e palavrões do coronel.  

Com um aperto no coração, uma tristeza estampada nos olhos, uma necessidade louca de se transformar em um super-herói qualquer, Pelezinho se despediu de seu amigo leão. Correu para o terreiro da fazenda, de onde vinham os gritos. E lá estava seu pai sendo chicoteado pelo patrão. Cheio de revolta e coragem, rasgando caminho por entre os curiosos que assistiam entristecidos o flagelo do pobre Juca, Pelezinho se colocou entre os dois e gritou o mais forte que sua fina voz permitia:  

_Pare aí, coroné!  

_Quer apanhar também seu moleque?  

_Se pensa que vai bater mais em meu pai está muito enganado!  

E, furioso, descontrolado e sem entender bem o que estava acontecendo e, pior, vendo crescer o número de curiosos, filhos de colonos que em volta deles começaram a aplaudir Pelezinho, Coronel Joaquim levantou o chicote para bater em Pelezinho. Pelezinho se esquivou espetacularmente e, foi perseguido pelo patrão. Correu em zigue - zngue pelo terreiro, driblando e enganando o coronel, que estava quase o alcançando, furioso. Já sentindo passar bem perto de si o estalar do chicote do enraivecido patrão, Pelezinho não teve alternativa senão revelar o seu segredo:  

_DUUUUNNNGGGAAAAAAAA!!!  

E todos viram assustados, com um rugido estrondoso, veloz como um raio, lindo, tão grande que nem sei, o leão de Pelezinho. Ninguém sabia da existência daquele leão. Com a sua esvoaçante juba prateada, atravessou o terreiro e, em defesa de seu amigo, pulou sobre o coronel derrubando-o ao solo. Só não o feriu porque Pelezinho não deixou, mas com a pata sobre o peito mantinha-o deitado no chão. A isso se seguiu uma vibração calorosa como um gol do Pelé de verdade em copa do mundo.  

Esta era a grande oportunidade de libertação. Com voz ameaçadora, enquanto Dunga mantinha o coronel deitado no solo, Pelezinho mandou chamar um advogado trabalhista, o delegado e várias testemunhas importantes da cidade, principalmente políticos oposicionistas ao prefeito e, ao coronel. Os amigos do coronel se prepararam para balear o leão, mas, Pelezinho, esperto como sempre, ficou bem agarradinho de seu leão e, com tanta testemunha ninguém se arriscou a ferir o menino. Pelezinho não aceitou negociação. Lembrando ao delegado, ao prefeito e, até mesmo ao padre, as vezes que pediam   socorro e nunca eram ouvidos, impôs sua condição: era o que ele queria ou a morte do coronel. E, como o leão rugia de forma impaciente e ensurdecedora, cada vez mais soltando seu peso em cima do coronel, este não teve alternativa, senão confessar o que todos já sabiam. Confessou que mantinha seus empregados como escravos, sem direitos trabalhistas e, que até os castigava corporalmente. Ali mesmo foi lavrada a denúncia e todas as autoridades presentes foram obrigadas a assinar. Só assim o leão recebeu ordem para soltar o coronel.  

Aquilo chamou a atenção de toda a cidade. Quando o coronel estava solto, juntamente com seus amigos e correligionários, tentaram inverter a situação, mas, foram surpreendidos pela presença de um Juiz de Direito que, pessoalmente, entregou uma ordem de prisão do Coronel ao delegado que ali estava. Ao mesmo tempo providenciou um abrigo seguro para o leão para que ele não fosse molestado. Pelezinho teve que entender que uma criança não pode se responsabilizar por um leão. O próprio Juiz procurou localizar o circo e informar da existência do animal. Mosquito, Rosilene e outros integrantes do circo ficaram felizes em saber que a leoa deixara um filhote e vieram comprá-lo de Pelezinho que não teve outra saída senão, entregá-lo. Mas, não aceitou vender o seu amigo. Já naquela época, passou a ser proibido ter animais no circo. Mosquito, o dono do circo, doou o animal para um zoológico. O zoológico de uma cidade mais próxima da cidade de Pelezinho para que ele pudesse ir vê-lo quando quisesse.  

Depois de julgada a causa os empregados receberam tudo que tinham direito em dinheiro. 

Seu Juca tratou logo de comprar um sítio. Continuou trabalhando muito, só que agora, para si mesmo e para a sua família.



Capítulo 5  

   

Gestos de amor desencadeiam outros gestos de amor  

   

Com o passar dos dias a vida de Pelezinho se transformou. Estava radiante e feliz vendo a felicidade de seus pais e de outros colonos como eles.     

Agora que seu pai comprara um sítio para trabalhar, com o dinheiro da indenização trabalhista, ele nunca mais passara dificuldade financeira. O mesmo não acontecia com muitos que ali moravam.   

Lembrou-se, com um engasgo, de uma família muito pobre que morava, não muito longe dali, pouco depois da grota do barro branco.   

Seu Nelson cachaça e Dona Rita, maluca da cabeça e, os seus quatro filhos: Jorginho, Zequinha, Onofre e o menor Gustavo. O mais velho com doze anos e o mais novo com nove meses. Pobres coitados, infelizes, filhos de um pai cachaceiro e de uma mãe   maluca.  Viventes da caridade alheia, magros, tristes, desnutridos e cheios de vermes.  

Pelezinho correu para lá. Pegou um pequeno trecho da estrada poeirenta de saibro branco que leva a Granada, passou por baixo da cerca de arames soltos, subiu a encosta de capim gordura e entrou na mata rala.  Quando atravessou a capoeira foi logo visto pelo cão pestilento, tão magro quanto sua família. Com seu latido mais bravo que, mais parecia um gemido, o cão tratou de ir anunciando a chegada, talvez, de uma alma piedosa que lhe trouxesse algo a mastigar.   

Do mata-burro, boquiaberto, emocionalmente derrotado Pelezinho viu à sua frente à pintura viva da injustiça social brasileira e das mentiras de nossos políticos.  

 A casa de pau-a-pique esburacada e coberta de sapé. Na porta o pilão de socar milho, a muito sem exercer sua função, servia de banco para dona Rita. A pobre senhora, mascando a língua, tinha no colo o caçulinha de nove meses, pestilento, magro, com ossos contáveis sob a pele, cabelos ralos, quebradiços e de duas cores, característicos de desnutrição. Indiferente, o caçulinha sugava, com toda a força que ainda podia ter, a magra teta de sua desnutrida mãe.  Mamava tentando tirar de lá, um resto daquele leite fraco que não sustenta ninguém. Os outros três, apenas diferentes de Gustavo no tamanho, sentados em um   banco velho, bem encostados um no outro, olhos fixos no nada, olhando na mesma direção, sem nada pensar, já que nem energia tinha o pensamento para gastar.   

Muito abalado, não conseguindo impedir que uma lágrima quente escorregasse pelo seu rostinho inocente, Pelezinho voltou correndo para casa. Voltou correndo com vontade de ajudar sem saber como fazê-lo.   

Chegando em sua casa, ele chorava copiosamente e foi recebido pela sua mãe que o abraçou forte indagando o que estava acontecendo. Soluçando tristemente, Pelezinho contou tudo para a sua amada mãe. Sua mãe, apertando-o junto ao seu peito, também chorou.   

Depois de acalmá-lo e consolá-lo, explicou a ele que a melhor maneira de ajudar alguém não é lhe dando dinheiro simplesmente. Depois de tê-lo convencido que criança como ele existe para sorrir, brincar, ser feliz e, não assumir obrigações que deveriam ser apenas de adultos, Dona Bia deu-lhe uma ideia de como ajudar seus amigos.   

Se cada vizinho de um pobre o ajudasse a mudar de vida ensinando-o a ganhar sem lhe dar de graça as coisas necessárias para subsistir, com o passar das décadas, uma onda mágica transformaria o mundo sem dependermos de políticos corruptos.   

  Com um beijo humilde, mas cheio de verdade Pelezinho despediu-se de sua mãe e saiu correndo em direção à grota do barro branco.   

Lá chegando pediu à dona Rita que deixasse seus filhos irem brincar com ele em seu sítio. Os meninos, com pescocinhos caídos sobre os ombros, voltaram os olhos quase sem brilho para ele e, sem esperar a resposta daquela pobre diaba, em fila indiana, passos curtos começaram a segui-lo. Enquanto isso o pequenino prendia nos lábios a mesma teta magra daquela desprotegida de Deus. O cão pestilento não balançava o rabo, pois nem energia tinha para fazê-lo.  

Chegando ao sítio Pelezinho mostrou aos três amigos a sua cabra leiteira. Gordona, bonita, mansinha e branquinha que nem sei, peitos grandões e cheios de leite. Sem necessidade de muito entender ouviram e gostaram da proposta de Pelezinho. Daquele dia em diante eles iriam cuidar da cabra. Ordenhá-la cedo, levá-la para pastar na colina de capim gordura e, ao riacho, para beber e se banhar. A cabra deveria ficar limpinha bem como livrá-la das moscas e dos carrapatos. Como pagamento receberiam almoço, janta, roupas novas e leite para o irmãozinho. Com um sorriso de felicidade tamanha, eles disseram que sim e, juntando um resto de energia que talvez tivessem, tentaram começar o serviço, mas, Pelezinho não deixou. Primeiro fez com que se banhassem, vestissem alguma roupa velha de seu   armário e lhes deu o que comer. Depois, felizes, foram eles levando a cabra por entre os pés de goiaba até o tortuoso riacho que escorria serpenteando por entre lindas pedras arredondadas.  

Bem cedinho no outro dia, agora mais despertos, já estavam no terreiro à sua espera quando Pelezinho abriu a porta de sua casa. Tomaram um gostoso e nutritivo café da manhã e foram cuidar de sua tarefa. E assim todos os dias, todas as semanas e já alguns meses sem nunca faltarem ao compromisso.   

Certo dia Pelezinho, orientado por sua mãe, lhes ofereceu outra função, já que, cuidar de uma cabra não lhes ocupava todo o dia. Plantar e cuidar de uma horta de verduras e legumes, seria a sua nova função. Ganhariam metade daquilo que vendessem e ainda poderiam tirar para levar para casa e, se alimentarem. E assim foi feito.   

Desde o início já levava os seus amigos no posto de saúde mais próximo onde o “Doutor sabe tudo” já cuidava da saúde deles. Também já ia com todos eles para a escolinha da fazenda e viviam todos muito felizes.  

Depois de muitos dias, já feliz com seus amigos agora felizes, sorridentes, bem alimentados, tão brincalhões como trabalhadores, a horta já produzindo, Pelezinho ficou surpreso ao chegar ao terreiro. Na horta, agachados, arrancando o mato e revirando a terra, Nelson Cachaça e dona Rita ajudavam seus filhos. Foi correndo perguntar à sua mãe o que estava acontecendo. Ela respondeu que eles chegaram cedo pedindo para trabalhar em troca de comida e ela deixara. E outros serviços lhes foram dados porque, embora meio confusa, Rita não era doida e, seu Nelson não bebia mais. Até o cão já latia forte e corria esbanjando energia protegendo e defendendo o quintal. Como não tinha nome passou a chamar o cãozinho de Bandith que todos gostaram...  

    FIM.