REFAÇA O
BATON
Vinícius
estava cansado. Nadara muito. Sempre que acabava os seus deveres como
professor, se não chovia, ele nadava intensamente no mar de Santos onde morava.
O sol já quase sumia no horizonte, empurrado pela noite que queria chegar.
Antes, porém, de se esconder no fim do mar, o sol escorregva os seus dourados
raios pelas ondas que não sabiam se apenas vinham ou se apenas voltavam das
areias claras.
As ondas vadias ainda beijavam os pés de Vinícius saindo do mar quando um
grito de socorro chamou a sua atenção. Ele se virou em direção ao grito. Alguém
pedia que salvassem um cãozinho que estava se afogando no mar. O coitadinho
estava sendo levado pela correnteza marítima e, quase não mais se aguentava
debater. Vinícius pegou uma prancha de surfe de um garoto e correu para o mar.
Conseguiu pegar o animalzinho. Quando chegou na praia quase não conseguia falar
de tão cansado, mas, o cãozinho estava salvo. Enquanto acariciava o bichinho,
Vinícius se sentiu abraçado e recebeu um beijo no rosto. Chorosas palavras de
agradecimento se misturavam com o suave perfume daquele abraço. O seu corpo
molhado se sentiu deslizar em um tecido de seda que vestia aquele abraço.
Vinicius se afastou, entregou o cachorrinho que estava com a coleira
arrebentada.
A dona do pet, uma adolescente,
agradeceu...
__Obrigada.
Eu estava passeando com ele na orla da praia. Meu cachorrinho se envolveu em
uma briga com outro cão. A coleira rompeu e, os dois correram para o mar. Veja,
eu nem estou com roupas de praia.
__Está
tudo bem com ele. Leve-o. Ele deve estar com frio.
Vinícius
pegou a sua bicicleta e foi para casa. A noite já chegara linda. Enquanto
pedalava a imagem da garota do cachorrinho não saia de seu pensamento. Ainda
sentia a seda branca do vestido dela deslizar pelo seu corpo molhado.
Vinicius praticava vários tipos de esportes. Gostava de pedalar pela
zona rural, nadar e correr.
Alguns
dias após salvar o cãozinho, em uma corrida na estrada rumo ao interior,
cansado, parou para se refrescar em uma cachoeira do caminho. Era ainda
madrugada. Uma orquestra de pássaros, de espécies das mais diversas, saudavam a
aurora que chegava. Borboletas coloriam o amanhecer em repetidas revoadas.
Vinícius observou que barulhentas galinhas disputavam o milho que, da
porta de uma palhoça, lhes era jogado. Caminhou até às proximidades da palhoça
e, qual não foi a sua surpresa. A garota que alimentava as galinhas era a mesma
do cãozinho que ele salvara da correnteza do mar, há alguns dias.
__Bom
dia, mocinha.
__Bom
dia.
__Há
alguns dias eu conheci uma linda garota, igualzinha a você.
__Linda
ela não era, mas, era igualzinha a mim, pois era eu mesma.
__Afinal,
você mora lá ou aqui? Já era quase noite e você passeava com um cãozinho.
__Sim.
Era o cãozinho de minha patroa. Eu trabalho lá de empregada doméstica. Todas as
tardes eu passeio com o cãozinho dela. Obrigado, mais uma vez, por ter me
ajudado. Se o pet da minha patroa morresse, você nem imagina, eu certamente,
morreria também.
__Você
chorou muito. Não era pelo pet?
__Também,
sim, mas, de medo da patroa, o meu choro era maior. Daqui a pouco
eles vêm me buscar. A filha dela vem me buscar. À noite, ela me traz de
volta.
__Então,
até breve. Gostei de ver você novamente. Mas, a menina que eu vi lá era você
mesma. E, mais, ela era linda sim.
__Posso
ficar vermelha?
__Pode
sim. Vai realçar os eus olhos claros e as suas poucas sardas charmosas. Até
mais. Leve o cão para nadar no mar hoje que estarei lá para salvá-lo.
Vinícius
retomou a sua corrida de volta para casa, pois, o trabalho o esperava. Era
professor de Física e Química no Segundo Grau de vários Colégios na Costa da
Mata Atlântica.
Estavam recomeçando as aulas, após o período de férias.
Durante quinze dias o seu trabalho seria dobrado, pois, iria substituir
a sua irmã, professora de matemática, que estava em lua de mel. Com apenas dezenove
anos, já era um capacitado professor.
O
recomeçar das atividades escolares é uma festa de grandeza e empolgação. Tudo
retoma a vida, a alegria da juventude empolga e convida para a vida que parecia
distante. Professor Vinicius já trabalhara durante o dia. Agora, à noite,
estava de volta ao colégio.
A
primeira aula da noite era de Matemática, em substituição à sua irmã, em uma
turma da sétima série. Ele não conhecia ninguém daquela turma. Entrou
cumprimentando em vós alta e se dirigindo ao seu lugar na mesa do professor.
Ninguém respondeu ao seu “boa noite”. Sem se importar, começo a fazer a
chamada, pelo número de cada aluno. Cabisbaixo, atento às respostas ao seu
chamado, até que chegou no número “33”. O número chamado não respondeu. Não
respondeu, mas, a turma caiu na “gargalhada”. Então deduziu-se que o aluno, ou
aluna, ali estava. Com a calma que lhe é peculiar, voltou a chamar o número
trinta e três e só ouviu a gargalhada da turma, menos a resposta ao chamado.
Mesmo assim, voltou a chamar “33” e, novamente o que se ouviu não foi a
resposta que queria e, sim, novamente, o gargalhar da turma toda. Calmamente,
Professor Vinícius terminou a chamada. Virou-se para apagar a lousa ainda sob
risos e piadas da “plateia” de alunos. Com todo o autoritarismo que lhe cabia,
Vinícius falou em voz, educada, mas, firme...
__Número
33 pode sair que está de falta.
__Não
vou sair, não posso ter mais falta.
Era
uma voz trêmula, feminina. Sem olhar para trás perguntou se ela queria que o
inspetor de alunos fosse chamado para retirá-la. Ela insistiu que não sairia.
Sem se virar ele acionou a campainha e um profissional da Disciplina entrou
pedindo licença. Ainda sem olhar para os alunos, sem ver quem era a “mocinha”,
Professor Vinícius pediu que ela estava perturbando a ordem e, que não poderia
continuar em sala de aula. Ela foi retirada.
Na
Sala dos Professores, como não poderia ser diferente, comentou-se sobre o
episódio. Vários professores que conheciam a aluna, comentaram que ela era uma
péssima aluna. Perdoavam pela dificuldade que enfrentava. Trabalhava como
doméstica, pais incultos e, a sua patroa, que por acaso era a sua tia é que a mantinha
na escola, quase obrigada. Sempre chegava na escola à noite cansada dos
afazeres domésticos durante todo o dia. Mas, era tarde, despediram-se e, cada
um foi para a sua casa. Professor Vinicius nem chegou a ver a “mocinha”, sabia
apenas que ela se chamava Samira. Samira Malka.
A
casa do Professor Vinícius era próxima do colégio. Ele morava com os pais. Era
solteiro. Quando não chovia, ele ia e voltava a pé do colégio. Professor
Vinícius acabara de entrar em casa e se preparava para um banho merecido,
quando a campainha tocou e a sua mãe foi atender.
__Vinícius,
meu filho. Tem um casal com uma garota querendo falar com você.
Ele,
cansado, já se preparava para o banho, mas, foi atender o casal e a garota que
já o esperavam na sala. Assustou-se quando reconheceu a garota, mas, jamais
imaginaria que ela, a mocinha do cãozinho do mar, seria Samira Malka. No
transtorno na sala de aula, eles não se viram, não se reconheceram.
__Professor,
boa noite. Desculpe o transtorno. Nós somos os responsáveis por Samira Malka no
colégio. Ficamos muito tristes com o ocorrido e a trouxemos aqui para lhe pedir
desculpas. Peça desculpas, Malka, vamos...