segunda-feira, 18 de março de 2024

 

REFAÇA O BATON

 

 

         Vinícius estava cansado. Nadara muito. Sempre que acabava os seus deveres como professor, se não chovia, ele nadava intensamente no mar de Santos onde morava. O sol já quase sumia no horizonte, empurrado pela noite que queria chegar. Antes, porém, de se esconder no fim do mar, o sol escorregva os seus dourados raios pelas ondas que não sabiam se apenas vinham ou se apenas voltavam das areias claras.

          As ondas vadias ainda beijavam os pés de Vinícius saindo do mar quando um grito de socorro chamou a sua atenção. Ele se virou em direção ao grito. Alguém pedia que salvassem um cãozinho que estava se afogando no mar. O coitadinho estava sendo levado pela correnteza marítima e, quase não mais se aguentava debater. Vinícius pegou uma prancha de surfe de um garoto e correu para o mar. Conseguiu pegar o animalzinho. Quando chegou na praia quase não conseguia falar de tão cansado, mas, o cãozinho estava salvo. Enquanto acariciava o bichinho, Vinícius se sentiu abraçado e recebeu um beijo no rosto. Chorosas palavras de agradecimento se misturavam com o suave perfume daquele abraço. O seu corpo molhado se sentiu deslizar em um tecido de seda que vestia aquele abraço. Vinicius se afastou, entregou o cachorrinho que estava com a coleira arrebentada. 

A dona do pet, uma adolescente, agradeceu... 

          __Obrigada. Eu estava passeando com ele na orla da praia. Meu cachorrinho se envolveu em uma briga com outro cão. A coleira rompeu e, os dois correram para o mar. Veja, eu nem estou com roupas de praia.  

          __Está tudo bem com ele. Leve-o. Ele deve estar com frio. 

         Vinícius pegou a sua bicicleta e foi para casa. A noite já chegara linda. Enquanto pedalava a imagem da garota do cachorrinho não saia de seu pensamento. Ainda sentia a seda branca do vestido dela deslizar pelo seu corpo molhado.     

          Vinicius praticava vários tipos de esportes. Gostava de pedalar pela zona rural, nadar e correr.  

        Alguns dias após salvar o cãozinho, em uma corrida na estrada rumo ao interior, cansado, parou para se refrescar em uma cachoeira do caminho. Era ainda madrugada. Uma orquestra de pássaros, de espécies das mais diversas, saudavam a aurora que chegava. Borboletas coloriam o amanhecer em repetidas revoadas.

          Vinícius observou que barulhentas galinhas disputavam o milho que, da porta de uma palhoça, lhes era jogado. Caminhou até às proximidades da palhoça e, qual não foi a sua surpresa. A garota que alimentava as galinhas era a mesma do cãozinho que ele salvara da correnteza do mar, há alguns dias. 

          __Bom dia, mocinha. 

          __Bom dia. 

          __Há alguns dias eu conheci uma linda garota, igualzinha a você. 

         __Linda ela não era, mas, era igualzinha a mim, pois era eu mesma. 

          __Afinal, você mora lá ou aqui? Já era quase noite e você passeava com um cãozinho.  

          __Sim. Era o cãozinho de minha patroa. Eu trabalho lá de empregada doméstica. Todas as tardes eu passeio com o cãozinho dela. Obrigado, mais uma vez, por ter me ajudado. Se o pet da minha patroa morresse, você nem imagina, eu certamente, morreria também. 

          __Você chorou muito. Não era pelo pet? 

          __Também, sim, mas, de medo da patroa, o meu choro era maior.  Daqui a pouco eles vêm me buscar. A filha dela vem me buscar. À noite, ela me traz de volta. 

          __Então, até breve. Gostei de ver você novamente. Mas, a menina que eu vi lá era você mesma. E, mais, ela era linda sim. 

          __Posso ficar vermelha? 

          __Pode sim. Vai realçar os eus olhos claros e as suas poucas sardas charmosas. Até mais. Leve o cão para nadar no mar hoje que estarei lá para salvá-lo.  

          Vinícius retomou a sua corrida de volta para casa, pois, o trabalho o esperava. Era professor de Física e Química no Segundo Grau de vários Colégios na Costa da Mata Atlântica.  

          Estavam recomeçando as aulas, após o período de férias.

          Durante quinze dias o seu trabalho seria dobrado, pois, iria substituir a sua irmã, professora de matemática, que estava em lua de mel. Com apenas dezenove anos, já era um capacitado professor. 

          O recomeçar das atividades escolares é uma festa de grandeza e empolgação. Tudo retoma a vida, a alegria da juventude empolga e convida para a vida que parecia distante. Professor Vinicius já trabalhara durante o dia. Agora, à noite, estava de volta ao colégio. 

          A primeira aula da noite era de Matemática, em substituição à sua irmã, em uma turma da sétima série. Ele não conhecia ninguém daquela turma. Entrou cumprimentando em vós alta e se dirigindo ao seu lugar na mesa do professor. Ninguém respondeu ao seu “boa noite”. Sem se importar, começo a fazer a chamada, pelo número de cada aluno. Cabisbaixo, atento às respostas ao seu chamado, até que chegou no número “33”. O número chamado não respondeu. Não respondeu, mas, a turma caiu na “gargalhada”. Então deduziu-se que o aluno, ou aluna, ali estava. Com a calma que lhe é peculiar, voltou a chamar o número trinta e três e só ouviu a gargalhada da turma, menos a resposta ao chamado. Mesmo assim, voltou a chamar “33” e, novamente o que se ouviu não foi a resposta que queria e, sim, novamente, o gargalhar da turma toda. Calmamente, Professor Vinícius terminou a chamada. Virou-se para apagar a lousa ainda sob risos e piadas da “plateia” de alunos. Com todo o autoritarismo que lhe cabia, Vinícius falou em voz, educada, mas, firme... 

          __Número 33 pode sair que está de falta. 

          __Não vou sair, não posso ter mais falta. 

          Era uma voz trêmula, feminina. Sem olhar para trás perguntou se ela queria que o inspetor de alunos fosse chamado para retirá-la. Ela insistiu que não sairia. Sem se virar ele acionou a campainha e um profissional da Disciplina entrou pedindo licença. Ainda sem olhar para os alunos, sem ver quem era a “mocinha”, Professor Vinícius pediu que ela estava perturbando a ordem e, que não poderia continuar em sala de aula. Ela foi retirada. 

          Na Sala dos Professores, como não poderia ser diferente, comentou-se sobre o episódio. Vários professores que conheciam a aluna, comentaram que ela era uma péssima aluna. Perdoavam pela dificuldade que enfrentava. Trabalhava como doméstica, pais incultos e, a sua patroa, que por acaso era a sua tia é que a mantinha na escola, quase obrigada. Sempre chegava na escola à noite cansada dos afazeres domésticos durante todo o dia. Mas, era tarde, despediram-se e, cada um foi para a sua casa. Professor Vinicius nem chegou a ver a “mocinha”, sabia apenas que ela se chamava Samira. Samira Malka. 

          A casa do Professor Vinícius era próxima do colégio. Ele morava com os pais. Era solteiro. Quando não chovia, ele ia e voltava a pé do colégio. Professor Vinícius acabara de entrar em casa e se preparava para um banho merecido, quando a campainha tocou e a sua mãe foi atender. 

          __Vinícius, meu filho. Tem um casal com uma garota querendo falar com você. 

          Ele, cansado, já se preparava para o banho, mas, foi atender o casal e a garota que já o esperavam na sala. Assustou-se quando reconheceu a garota, mas, jamais imaginaria que ela, a mocinha do cãozinho do mar, seria Samira Malka. No transtorno na sala de aula, eles não se viram, não se reconheceram. 

          __Professor, boa noite. Desculpe o transtorno. Nós somos os responsáveis por Samira Malka no colégio. Ficamos muito tristes com o ocorrido e a trouxemos aqui para lhe pedir desculpas. Peça desculpas, Malka, vamos... 

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