domingo, 3 de março de 2024

 

 

 

 UM NOVO DEZEMBRO

 

          

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 









                                              DR. AFRANIO BASTOS

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Dedicatória

 

À minha princesa Ana Júlia Bastos

 

 

 Década de sessenta. Juiz de Fora, MG.

           Meu nome é Emílio. Acabei de me formar em Medicina na Universidade Federal de Juiz de Fora.

           Nos últimos dias vivemos só de alegria.  Ontem, o dia da colação de grau, foi apenas festa, comemoração, confraternização e sensação de dever cumprido. 

           Na “República” em que moramos no largo do Riachuelo, todos acordamos muito tarde, hoje.

           Meus colegas de moradia já haviam feito as suas malas e, cada um para um destino diferente, após calorosas despedidas, foram embora e eu fiquei sozinho naquele apartamento. Um apartamento de moradores temporários, de rapazes solteiros, onde os desejos, os sonhos, as vitórias, as derrotas e as aventuras, das mais diversas, se agarravam, se confundiam, se revezavam e disputavam espaços do teto, das paredes, dos móveis e, em tudo estão gravadas.

           Eu me levantei, tomei um bom banho. Estava com fome, mas já havia passado o horário, não só do almoço, mas, também., do jantar, no Refeitório Universitário, o famoso RU.

           Como já passavam das dezenove horas, resolvi sair, ver um bom filme, e, no cinema enganar o estômago com pipocas. Depois comer uma boa pizza.

          Embora estivéssemos em dezembro, ventava muito, chovia forte e o frio incomodava. Tentando não perder o guarda-chuvas para o vento, eu desci a Rua Halfeld e, em todos os cinemas já não encontrei ingresso para aquela sessão. A próxima seria muito tarde. A semana fora desgastante e, embora eu estivesse dormido até tarde, quase o dia inteiro, meu corpo ainda pedia cama.

           Desisti de ir ao cinema e procurei a melhor pizzaria ali da rua Halfeld. Fiz um pedido de minha pizza preferida e, solicitei que, antes da pizza, me trouxessem um bom vinho. A pizzaria estava com poucos clientes e, portanto, não demoraria a ser servido. Confesso que eu estava mais interessado no vinho do que na pizza, embora estivesse com fome.

           Enquanto eu degustava o vinho eu pensava em minha vida estudantil. Meu pai faleceu muito jovem. Eu ainda era criança. Quando o meu pai faleceu eu, com apenas cinco anos de idade, sofri muito. Sofri pelo tanto que ele me amava. A minha mãe guerreira soube me criar, me educar e fazer de mim um médico e, de meu irmão, um engenheiro.  Eu terminara o meu curso de medicina, passara na prova de Pós-graduação em Cardiologia e, na semana seguinte, eu deveria fazer a minha matrícula. Por isso não pude viajar para a minha casa como fizeram os meus amigos de república.

           Eis que, na pizzaria, entra uma jovem, bem jovem, muito bem agasalhada, capa de chuva, botas de cano longo, um gorro a lhe esconder os cabelos, exceto uma mecha que descia por debaixo do gorro ladeando o seu rosto divinamente lindo. Ela se dirigiu ao balcão, fez algum pedido e ali permaneceu em pé.

No mesmo momento em que um garçom entregava o pedido dela e, ela pagava e se preparava para sair, dois mascarados, de armas em punho, entraram na pizzaria anunciando um assalto. Um dos poucos clientes que ali estavam era policial militar a paisana e reagiu. Sacando a sua arma, ele deu voz de prisão aos bandidos.  Eles reagiram. Houve troca de tiros. Os bandidos morreram. Gritando desesperadamente, os clientes saíram correndo da pizzaria. Inclusive eu tentei sair, mas, vi que a bela jovem estava caída no chão e, voltei. Ela estava sangrando muito na cabeça. Eu acabara de fazer o Juramento médico há apenas um dia. Eu não tinha o direito de sair correndo também. Em um rápido exame eu tive a impressão de que fora um ferimento superficial, mas, ela não respondia a chamados e nem a estímulos. Respirava bem e tinha normais os sinais vitais. Provavelmente, uma concussão cerebral.

          O socorro chegou rápido.  Amigos de faculdade estavam na ambulância. A jovem estava sozinha e, eu me ofereci para acompanhá-la.

          Procurei em sua bolsa algum número de telefone para avisar a família. Achei. Naquela época não existia telefone celular. Quando chegássemos na Santa Casa eu telefonaria para a família dela.

             A sua Carteira de Identidade me revelou o nome dela. Era Núbia.  E, a idade também. Ela tinha apenas 16 anos, era uma criança, uma linda criança, apenas uma criança.

            Chovia muito e, a sirene da ambulância abria caminhos no trânsito, que era intenso, na linda Av. Rio Branco, rumo à Santa Casa de Misericórdia. Para um profissional socorrista da saúde, nada existe de mais lindo que a sirene  de uma ambulância.

           No trajeto ela despertou. Despertou sem saber o que acontecera. Naturalmente. Chegou a ficar agressiva. Com muito cuidado conseguimos convencê-la a se deixar levar até o pronto atendimento, até porque ela estava muito suja de sangue. Eu já disse, o couro cabeludo sangra muito.

           Após rigorosa avaliação clínica, normal, como também uma radiografia de crânio (tomografia computadorizada ainda era apenas um sonho, não existia) que mostrava que a calota craniana não fora afetada, apenas o couro cabeludo. O ferimento foi suturado e, sem ser liberada, a jovem foi embora. Foi embora antes que eu ligasse para a família dela.

           Ela saiu dali, mas, não saiu de meu pensamento, muito menos o seu nome, Núbia.

           Uma semana depois começaram as aulas do curso de Pós-graduação. Eu me levantei cedo, me banhei, tomei um rápido desjejum e corri para o ponto de ônibus no Largo do Riachuelo. Cheguei bem na hora, pois o ônibus universitário dava seta para estacionar. O ônibus parou.  Eu entrei. O ônibus não estava cheio. Havia vários lugares vazios. Observei que a moça da pizzaria estava sozinha e tentei me sentar ao seu lado e, dizendo que a cadeira estava ocupada, ela impediu que eu me sentasse. Observei que ela usava uma camisa do Curso Técnico Universitário, CTU. Fiquei muito frustrado e, mais ainda, quando chegamos na Universidade e ela continuava sozinha. Eu desci e ela continuou, pois, ela deveria descer no último ponto.

            Alguns dias se passaram. Eu insistia em tirá-la de meu pensamento, até porque, além de se tratar de uma criança de dezesseis anos, ela fora ingrata e deselegante. Mas, ela insistia em não sair.

           Estava acontecendo o torneio Universitário de voleibol feminino. Naquela noite ocorreria uma semifinal entre Advocacia e Farmácia.  Eu seria o Juiz. Eu fazia parte da liga universitária de ârbritos.

           O jogo já havia começado quando, do alto de minha plataforma de arbitragem, eu a vi entrando na arena  abraçada com um homem. Parecia mais velho do que ela. Estavam muito alegres e vibravam com fortes abraços a cada lance disputado na quadra.  Não tive muita certeza, mas, pareciam um casal de namorados.      

           Quando o jogo terminou e a torcida estava saindo, eu tentei ser notado por ela, mas não fui. O time da Advocacia venceu.

           No dia seguinte teria a outra semifinal entre o time do CTU e o da Medicina.

         Desta feita eu estava apenas como torcedor. Antes de começar o jogo ela, estava conversando alegremente com o seu suposto “namorado”. Logo vi que ela jogaria, estava uniformizada e, logo entrou para fazer aquecimento. Eu não deveria estar ali. Ela era muito mais bela, muito mais sensual, muito mais do que eu poderia almejar.  Lindas pernas torneadas que terminavam (ou começavam) em amolduradas nádegas que não se escondiam totalmente em seu short minúsculo. Muito esbelta. Um tórax sustentando um crânio, ambos, artisticamente desenhados. Nunca observara que um nome poderia ser tão lindo, Núbia e, uma idade também linda, mas, duas coisas me incomodavam... (Eu era dez anos mais velho e, parecia, ela já tinha namorado) .

         O meu time, Medicina, perdeu. O time do CTU foi para final. Enfrentaria o time da Advocacia que vencera a semifinal anterior. Estranhamente, eu não fiquei triste com a derrota de meu time. Núbia, a moça da pizzaria, a baleada que eu ajudei a socorrer e me desprezava, era muito boa jogadora. Também muito contestadora com as condutas da arbitragem, às vezes, arrogante e agressiva.  Mas, havia elegância até em sua agressividade, ou os meus olhos estavam enfeitiçados por tanta formosura.

          Havia algo muito estranho acontecendo comigo. Eu não sabia se estava apaixonado ou apenas enfeitiçado por aquela divindade em forma de mulher-criança, ou, criança-mulher. Embora eu quisesse estar apaixonado, parecia que eu não me importava com o seu “namorado”. Fiquei feliz por ela. Ensaiei ir parabenizá-la, mas, novamente ela me desconheceu e passou por mim correndo para um abraço de felicidade de seu “namorado”. Ele era realmente mais velho do que ela. Aparentemente, nem tanto, mas, era mais velho. Mas, que importância teria? Eu, não sabia se estava apenas “enfeitiçado”?

           Uma semana depois, em um sábado muito chuvoso, às vinte horas, seria o jogo final entre CTU e Advocacia. Seria daqui a uma hora. Optei em não ir.  Preferi ficar em casa tentando ver uma programação qualquer na televisão. Ela já devia estar se aquecendo. Ou quem sabe ainda conversando e se agarrado com o seu “namorado coroa”. Eu tentava ver o filme na TV, mas, o meu pensamento insistia em estar na quadra e, eu teimava e, o fazia voltar e se concentrar no filme.

          Tocou a campainha. Fui atender. Eram colegas da Universidade. Vieram me buscar para arbitrar o jogo. A equipe escalada para aquela noite, ao se conduzir para a quadra, houve um acidente de trânsito em virtude do forte temporal e todos estavam sendo medicados na Santa Casa. Era uma emergência. Relutei inicialmente. Parecia que eu não queria vê-la... ou queria? Querendo, ou não, eu fui levado.

           Enquanto nos dirigíamos para o Centro Olímpico eu cheguei a cogitar da possibilidade de adiar o jogo, em virtude do temporal que parecia aumentar. Meus colegas disseram que seria impossível, pois, a quadra estava cheia de torcedores e, era bem coberta e protegida de qualquer temporal. E, estava mesmo, eu pude ver quando chegamos. Lotação completa e muito barulhenta.

           As duas equipes, Faculdade de Advocacia e CTU, as duas finalistas, estavam em quadra se aquecendo. Não houve atraso com a troca da equipe de arbitragem.

           Ela estava lá. Núbia estava lá. Tentei não a observar. Não consegui. Tive que optar em não a deixar ver que eu a observava. Não sei se consegui.

           E, começou o jogo. E, continuou o jogo. O ginásio era um barulho só. Do alto de plataforma de juiz, correndo os olhos, via-se que parecia haver apenas torcida do time da Advocacia, que, aliás, estava ganhando de 2 sets a zero. As moças do time que estava sendo derrotado, o time do CTU, estavam nervosas, agitadas e, até confusamente indisciplinadas. Mas, ao contrário de comportamentos anteriores, ao contrário do que eu estava preparado, psicologicamente, para esperar dela, Núbia estava serena e, mostrando liderança.  Antes de começar o terceiro set, ela conversou com o técnico longamente e, depois, individualmente com cada uma das colegas em quadra.

           Todas em quadra. Tudo pronto para o reinício do jogo. Os dois times apenas esperavam que, como juiz, eu o fizesse, o autorizasse.

           O olhar de Núbia, pela primeira vez em todos estes dias, semanas, ou meses, se fixou no meu. Obviamente, eu não tentei fazer diferente. Fixei o meu olhar no dela. Nenhum de nós dois conseguiu entender o significado daquele olhar. Mas, eu a senti mais necessária ainda em minha vida. Autorizei o início do jogo, agradecido por estar ali.

           O barulho da torcida era imenso, mas, o time da CTU parecia querer dizer o porquê de estar ali. Ganhou o terceiro set. Núbia comandou aquela reação jogando extraordinariamente bem. E, comemorando aquela tendência de recuperação, vibrando com as colegas em quadra, novamente ela me olhou fixamente. Cheguei a me sentir desconfortável de emoção e felicidade.  Sem tirar os olhos do meu, ela caminhou até mim e me agradeceu por eu estar ali. Não entendi. Eu fui imparcial. Não fui, em nada, responsável, pela vitória naquele terceiro set. Mas, sem entender ou não, começou o quarto set que, magistralmente, foi também ganho pelo time do CTU. Núbia fora a heroína do jogo nos dois últimos sets. O placar era de 2 a 2 naquele momento.

      O tie-break, também, foi vencido pelo time de Núbia que saiu carregada da quadra. Ela fora realmente a responsável por aquela virada. Eu pensei que, depois daqueles dois olhares magicamente fixos, eu teria a oportunidade de falar com ela e a parabenizar. Mas, isso não aconteceu. Depois de receber a medalha, levantar a taça, ela correu para o vestiário e, de lá saiu nos braços de seu “amado”. Eu nunca mais a vi.

            Dois anos se passaram e, sem esquecê-la, eu nunca mais a vi.

            Uma certa manhã, eu estava indo para o trabalho na Santa Casa de Juiz de Fora (eu já terminara a minha Pós-graduação). Parado no sinal vermelho do semáforo, da Avenida Rio Branco, esquina com a Rua Halfeld, ao lado do gigantesco e lindo parque do mesmo nome, Parque Halfeld, eu pude ouvir uma voz de mulher, desesperadamente pedindo socorro. O sinal estava fechado.

           __Socorro, alguém me ajude. Meu pai está morrendo...

           O dever falou mais alto. Quando o dever fala não se ousa desobedecer.  Rapidamente coloquei o triangulo a alguns metros da traseira do veículo e, nos dois para-brisas, coloquei chamativos de “emergência médica” que sempre eu tinha no carro. Corri para o local de onde vinham os gritos. Era ela, Núbia, ajoelhada ao lado daquele homem que eu pensava ser o seu “namorado”. Não deveria pensar isso naquela hora, mas, confesso que senti alívio. Era o pai dela. Ela chorava muito.

           __Calma, Núbia, calma. Conte como aconteceu.

           __Nós estávamos fazendo a nossa caminhada rotineira, ele gritou de dor no peito e caiu. Não mais respondeu. Mas, como sabe o meu nome?

            __Depois eu falo. Corra no meu carro que está no semáforo com pisca alerta ligado. No porta-malas tem uma bolsa grande de emergências. Traga-a para mim e, ao mesmo tempo chame uma ambulância.    

            Neste momento chega a polícia e, ao se inteirar do que estava acontecendo, pelo rádio, chamou o corpo de bombeiros que chegou rapidamente e assumiu o atendimento. Não necessitei usar o meu equipamento. A ambulâncias do corpo de bombeiros seguiu para a Santa Casa levando pai e filha. Eu fui no meu carrol.

           Quando cheguei lá ele já estava sendo atendido na Emergência. Subi para o meu plantão na UTI. Quando passei por ela fui novamente interrogado por ela.

           __Como você sabe o meu nome? 

           __Você se lembra do Campeonato de vôlei onde o time do CTU foi campeão? Você estava lá. A torcida gritava muito o seu nome. Eu era o árbitro. Eu também estava lá.

            __ Entendi.

            __Mas, eu já sabia seu nome.

           __Como já sabia?

           __Quando você foi baleada na pizzaria. Eu também estava lá. Eu socorri você. Assim que o seu couro cabeludo, que sangrava muito, foi suturado, você fugiu do hospital. Mas, tenho que trabalhar. Melhoras para o seu pai.

           __Obrigada por ter atendido o meu grito de socorro e, salvo o meu pai. Obrigada, também, por ter me socorrido na pizzaria.

           Eu disse que não havia necessidade de agradecer, subi para a UTI e assumi o meu plantão. Havia poucos pacientes internados e, todos estava evoluindo bem. Quando me passou o plantão, o colega me adiantou que o paciente que eu atendera no Parque Halfeld subiria para a UTI, pois, havia sofrido um, infarto agudo do miocárdio.

         Assim que o paciente chegou, já acordado, lúcido e orientado e sem dor, foi monitorizado e tomado os cuidados iniciais. Quando eu analisei o resultado do cateterismo coronariano dele, eu não tive dúvida, ele teria que ser operado. Teria que se submeter a uma revascularização do miocárdio. Pedi para falar com a filha e, expliquei da necessidade. Fui muito claro com ela e falei sobre os riscos e benefícios. Núbia chorou muito.

           Não demorou muito e o paciente foi levado para a unidade de cirurgia cardiológica. Em torno de oito horas depois ele estava de volta e muito bem. Eu deixei a filha entrar para vê-lo, através do vidro do isolamento, sem que ele a visse para evitar emoções desnecessárias. Núbia chorava silenciosamente. Eu sugeri que ela descesse até o Pronto Atendimento para ser medicada. Ela não quis.

          Depois de três dias ele saiu da UTI e foi para o apartamento. Em todo esse período, Núbia só saía do Hospital para se banhar, se trocar e, retornava.

          No partamento, além da equipe cirúrgica, eu fazia visitação clínica diariamente. Tive muita oportunidade de conhecer a família, que eram apenas eles, Sr. Fernando e Núbia, pai e filha. O pai que durante muito tempo eu achei que poderia ser “namorado”. Eles tinham uma história triste e, outra, linda.  Núbia já, naqueles dias, havia me contado as duas. Quando comentei com o paciente, pai dela, sobre a vida deles, ele me contou tudo novamente. Disse ele.

          __Eu fiquei viúvo muito cedo. A minha esposa faleceu atropelada. Antes mesmo que eu me recuperasse da dor da perda, uma jovem senhora que trabalhava em nossa casa, sequestrou, roubou o meu filho mais velho, com cinco anos de idade. Durante anos a polícia procurou por ela e não a encontrou, nem o meu filho. Ficou apenas Núbia. Núbia tinha apenas seis meses de idade. Eu tinha que trabalhar, não tinha com quem deixá-la. Eu era motorista de taxi.

          __Sabe, Dr. Emílio. A razão de eu ser muito agarrada com meu pai é esta. Ele nunca me deixou sozinha. Ele retirou o banco do carona de seu taxi, fez ali um confortável bercinho e, aonde ele ia, eu ia junto. Os clientes adoravam viajar com o “taxi da bebezinha’, conforme meu pai me contou.

           __Eu não tinha coragem de contratar outra empregada. Eu tinha medo de que ela roubasse a minha princesinha. Nunca a deixei em creches. Eu queria estar com ela.  Quando ela começou na pré-escola, eu a deixava na escola e ia trabalhar. Ao final da aula eu a buscava, a gente almoçava, íamos a um parque, ela brincava com amigas e se divertia. Então voltávamos para o trabalho. Nesta altura, já não era um bercinho e, sim uma confortável cadeirinha e, ela crescendo, esta cadeirinha também a acompanhava. De repente ela se transformou em minha ajudante. Não apenas uma “caroneira de taxi”. Só nos separamos quando ela está em atividades escolares. Eu insisto com ela para sair e se divertir, mas, ela só vai se eu for junto.

            __Bem amigos, eu tenho que ir. Passo novamente amanhã

para dar alta para você, Fernando. Até mais Núbia.

           Núbia me acompanhou até a porta do quarto. Me abraçou forte e, agradecendo, deu-me um beijo no rosto. Eu senti que não estava ali. Não sei onde, não sei como, mas, meus pensamentos se confundiram com aquele beijo.

           À noite eu voltei ao Hospital para ver um paciente, outro paciente. Quando eu ia saindo, a encontrei no jardim. Ela pareceu muito feliz em me ver. Fiquei surpreso com a súbita mudança de personalidade dela.

           __Dr. Emílio, que bom ver você longe de meu pai. Hoje o meu pai confirmou a história que eu já contara. Eu aprendi a não o deixar sem mim. Ele sempre insistiu para eu sair com amigos, namorar e aproveitar a vida. Mas, e se o meu namorado não entendesse? Se ele não entendesse, eu teria que deixá-lo, jamais deixaria meu pai. Eu tenho que confessar algo para você, mas, estou com vergonha.

          __ Núbia, faz parte de minha formação, ouvir, não julgar e guardar segredo. Fale se quiser.

           __Eu sempre procurei me afastar de possíveis namorados. Eu nunca me interessei por ninguém. No CTU (curso técnico universitário) eu sou muito assediada...

         __O seu maior inimigo é a sua beleza... só de passar perto você assedia alguém. Mas, o que tem para me falar?

         __Eu amo você!....

         __Como?... Não seria por eu ter salvado o seu pai e você está confundindo os sentimentos?

          __Há mais de dois anos, em uma noite chuvosa, eu entrei na pizzaria preferida de meu pai para trazer uma pizza para ele. Ao entrar meus olhos cruzaram com alguém que estava tomando vinho e, me assustei com uma sensação estranha que se apossou de mim. Senti o risco de perder o controle de meus pensamentos. Essa pessoa era você. Quando eu me despertei no hospital e vi você ao meu lado, o medo daquele sentimento se apossou de mim. Eu não tinha aquele direito. A companhia de meu pai era mais necessária. Eu, pela primeira vez, me senti frágil, pela primeira vez eu não consegui rejeitar aquele sentimento. Saí correndo em defesa de minha única responsabilidade. A responsabilidade de não sair e deixar a solidão abraçar o meu pai. O meu pai que nunca me abandonou, que apenas demostrava felicidade me abraçando criança, me abraçando adolescente, me abraçando adulta. Ele nunca desabafou, mas, a saudade da minha mãe e de meu irmão desaparecido não deixavam o seu coração sorrir, apenas os lábios o faziam para me confortar. Eu bem sabia.

Depois, no ônibus universitário, assim que você entrou, eu fui novamente assaltada pelo medo de sua presença e... menti dizendo que estaria ocupado aquele assento. Muito tempo depois, no Ginásio de Esportes da Universidade, naquele torneio de vôlei feminino, por duas vezes eu senti que você estava se dirigindo a mim. Creia, a minha vontade era parar e esperar você, mas, eu despistava e passava direto. O meu coração ordenava esperar você, agarrar e beijar intensamente você, declarar o amor que o seu olhar rápido implantou em meu coração quando eu, toda molhada pela chuva, entrava naquela pizzaria. No entanto, o meu cérebro vencia os desejos do coração e, eu corria para os braços de meu pai.       

          __Que eu pensava, Núbia, que ele era seu namorado...

          __E era, de certa forma, pois, eu nunca quis ter um namorado que me afastasse dele.

           __Você é muito linda, mas o seu coração é mais belo do que o seu corpo.

           __E mais. Você arbitrando aquela final de vôlei onde o meu time foi campeão, eu não conseguia desviar o meu olhar de você. Você parecia não me ver. Apenas duas vezes os nossos olhares se cruzaram e, aquilo foi muto mais felicidade do que o título de campeã.

           __Núbia, naquele jogo, parecia que você jogava sozinha. A torcida só gritava o seu nome, você não parava, incentivava as colegas de quadra, não errava um lance sequer. Não posso acreditar que você estivesse desligada do jogo.

          __Eu fazia um esforço enorme para ajudar o meu cérebro a derrotar o meu coração. Quando estávamos vibrando e sendo cumprimentadas pelas pessoas em volta, eu tive medo de que você fosse me cumprimentar, como foram os juízes de linha, autoridades presentes e organizadores do torneio. Eu tive medo de não ouvir o que você fosse me falar e calar a sua boca com um longo beijo de amor e...

           __Saiu do vestiário carregada por aquele homem, que, na minha cabeça, era seu “namorado”.

          __Sim, sim. Por que, naquela manhã, no ônibus universitário, você não se assentou atrevidamente ao meu lado e, me beijou? Eu queria isso?

           __ Como assim? Como beijar você à força? Você era uma criança de dezesseis anos, apenas.

          __Não, não. Eu era uma mulher que teve o coração invadido, flechado por um “índio pequenino”, eu era um coração explodindo de amor sem poder amar.

           __Eu já era um médico e, você, uma linda criança. Eu jamais, embora quisesse, jamais beijaria você. Eu, se o fizesse, seria linchado pelos universitários que estavam naquele ônibus.

          

           __Não, não. Eu não deixaria você ser linchado. Mais uma vez, obrigada por ter salvado a mim e ao meu pai. Você pode pensar o que quiser, virar as costas, ir embora e, nunca mais me ver, mas, você deveria ter me forçado a fazer o que eu vou fazer agora...

          E, agarrando fortemente Dr. Emílio, ela o beijou na boca freneticamente. Ele respondeu àquele beijo com a mesma intensidade e paixão. Ambos tremiam de felicidade por terem conseguido libertar aquele sentimento que, os maltratava ao mesmo tempo que os enchia de sonhos e fantasias. Estranhamente, ambos sentiram remorso de terem se beijado. Ambos se sentiram envergonhados de tê-lo feito. Ela permaneu abraçada com Dr. Emílio. Tremia. Ele também. Silenciosamente se afastaram e, Dr. Benício se dirigiu para o carro. Núbia voltou para o quarto do Hospital onde seu pai estava internado. Ele dormia. Ela se banhou e se acomodou para descansar.

           Fernando, pai de Núbia, o paciente infartado, recebeu alta hospitalar muito bem recuperado. Dr. Emílio já deixou agendado o dia da revisão, para dali a duas semanas.

           No dia marcado para o retorno, o paciente estava muito bem. Após receber novas orientações médicas Sr. Fernando e a sua filha Núbia convidaram Dr. Emílio para almoçar na casa deles, no final de semana seguinte.

          __Será um prazer, mas, neste final de semana meu irmão virá me visitar. Depois a gente recombina, não?

          __Não, não. Pode levar o seu irmão também. Ele mora onde? Você tem muitos irmãos?

          __Não. Apenas este. É um irmão adotivo. Nós morávamos em uma fazenda. Minha mãe, já viúva, faleceu há um ano. Eu e meu irmão resolvemos vender a fazenda e ele vir morar aqui. Ele se formou em Engenharia este ano e, já está empregado aqui em Juiz de Fora. Não temos mais parentes. Acho que não temos direito de abusar da amizade. Não podemos incomodar.

          __Não será incômodo.  Será um prazer. Leve o seu irmão com você. Srá um prazer conhecer o irmão do melhor médico do mundo. Esperamos vocês, certo?

         Concordaram com o encontro.

          A semana passou rápido. Dr. Emílio e seu irmão adotivo chegaram à casa de seu paciente e de sua filha, a apaixonante, Núbia. Quando desceram do carro, em frente à casa, Fernando, o irmão adotivo de Dr. Emílio parou pensativo. Olhou silenciosamente a casa, a rua, as árvores do lugar. Parecia curioso, surpreso e angustiado.

           __O que foi, Rafael? Parece assustado!

           Neste momento Núbia abre a porta da casa e, assustada, vê o irmão de Dr. Emílio passar por ela, sem a cumprimentar, entrar casa adentro, correr quarto por quarto, depois na cozinha e na área do quintal. Depois chorando voltou para a sala deixando Sr. Fernando assustado. Ele chorava e gritava, que conhecia aquela casa. Depois pegou um porta-retrato em cima da mesa, olhou demoradamente, beijou e abraçou o porta-retrato chorando copiosamente.

           __Eu conheço esta foto. É minha mãe com a minha irmãzinha no colo. O que aconteceu comigo, meu Deus? Agora entendo por que eu sonhava tanto com esta casa, e, com esta foto.

          Todos ficaram sem ação, atônitos, parados sem saber o que pensar. Dr. Emílio foi o primeiro a tentar entender.

          __ O que aconteceu meu irmão. Fernando, o que está dizendo, meu irmão. Não chore Fernando.

           __Fernando? Fernando é o nome de meu filho... meu Deus! É você, meu filho?

           __Papai?  Meu papai. Como você envelheceu! O que aconteceu comigo, meu pai? Onde está a minha bebezinha?

           Núbia e o seu pai caíram num choro descontrolado e, abraçaram fortemente o irmão de Dr. Emílio.

           __Papai, minha irmã, o que aconteceu comigo? Não me lembro seus nomes

           __Esta é Núbia, a sua bebezinha linda. Eu, meu filho, batizei você com o mesmo nome meu. Como você, eu me chamo Fernando.

           Enquanto eles choravam copiosamente, abraçados, Dr. Benício tentava acalmar aquele ambiente de emoção extrema, temendo o coração de seu paciente. Depois de longas interrogações, aconchegos de saudades e paixão, o irmão adotivo de Dr. Emílio quis saber como tudo aquilo acontecera.

           __Meu Deus, meu Deus... o que aconteceu comigo...

           __Fernando, meu filho. A nossa empregada de muitos anos roubou você aqui de casa. Vizinhos a viram sair com você no meu carro. Eu tinha saído para levar a bebezinha ao médico. A sua mãe havia sido atropelada e morta, havia poucos dias. Quando cheguei em casa não encontrei meu carro, as suas roupinhas e as nossas malas. A polícia vasculhou este Brasil inteiro sem sucesso. Muito tempo depois, meu carro foi encontrado em um rio em Minas Gerais. Ela, a empregada, estava dentro do carro, morta. Seu corpinho, meu filho, nunca foi encontrado.

           __Emílio, meu irmão, como eu fui parar na fazenda de sua mãe?

           __Eu sei tudo que aconteceu. A minha mãe me contou toda esta história várias vezes. Eu era muito criança quando você foi morar conosco. Nós tínhamos cinco anos.

           __Como assim, fui morar com vocês?

           __Várias vezes a minha mãe me contou esta história. Segundo ela, da Janela da casa grande da fazenda, ela viu um carro parar na estrada, uma jovem senhora tirar uma criança do carro e, após deixá-lo chorando na estrada, partiu em disparada. Segundo a minha mãe a criança chorava muito. Esta criança era você, Fernando. Você parecia desesperadamente triste. Parecia estar chorando a muito tempo. Você, meu irmão, se agarrou tanto ao carinho de minha mãe que ela ficou receosa de entregar você para as autoridades. Ela nunca imaginou que você pudesse ter sido sequestrado. Ela imaginava que fora a sua mãe que o abandonara. Ela teve medo de que você fosse levado para um orfanato. Meu pai morrera alguns dias antes, ela estava muito sensível. Ela achou em você uma forma de esquecer a morte de meu pai, dizia ela. Ela ficou com você para ela, para nós. Agora, meu irmão, eu entendo por que você estava sempre triste, pensativo. Você tinha muitos pesadelos e acordava chorando.

           __E como você explica eu ter o mesmo nome de meu pai?

           __Segundo a minha mãe, você foi abandonado sem nada. Tinha apenas, no bolso, a sua certidão de nascimento. Você rinha fome e sede, e, chorava muito.

         Todos se abraçaram agradecidos a Deus. Era véspera de Natal. Alguns dias depois seria Natal. Pai, filho e filha receberam o melhor presente de Papai Noel que poderiam querer. Programaram a maior festa de Natal já vista. Todos os vizinhos se encarregaram de enfeitar toda a rua.

           __A recuperação da felicidade perdida daquela família, começara há mais de dois anos, em UM DEZEMBRO na pizzaria... a recuperação da felicidade daquela família se concretizou, de verdade, em UM NOVO DEZEMBRO.

          E o Menino Deus nasceu de verdade em todos os corações. Eu e Núbia nos casamos. Ela fez questão de morar na casa de seu pai... para protegê-lo e para compensar o tempo perdido junto ao seu irmão.

           Foi um momento ineaquecivel aquele “NOVO DEZEMBRO”.          

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