UM NOVO DEZEMBRO
DR. AFRANIO BASTOS
Dedicatória
À minha princesa Ana Júlia Bastos
Meu nome é Emílio.
Acabei de me formar em Medicina na Universidade Federal de Juiz de Fora.
Nos últimos
dias vivemos só de alegria. Ontem, o dia
da colação de grau, foi apenas festa, comemoração, confraternização e sensação
de dever cumprido.
Na
“República” em que moramos no largo do Riachuelo, todos acordamos muito tarde,
hoje.
Meus colegas
de moradia já haviam feito as suas malas e, cada um para um destino diferente,
após calorosas despedidas, foram embora e eu fiquei sozinho naquele
apartamento. Um apartamento de moradores temporários, de rapazes solteiros,
onde os desejos, os sonhos, as vitórias, as derrotas e as aventuras, das mais
diversas, se agarravam, se confundiam, se revezavam e disputavam espaços do
teto, das paredes, dos móveis e, em tudo estão gravadas.
Eu me
levantei, tomei um bom banho. Estava com fome, mas já havia passado o horário,
não só do almoço, mas, também., do jantar, no Refeitório Universitário, o
famoso RU.
Como já
passavam das dezenove horas, resolvi sair, ver um bom filme, e, no cinema
enganar o estômago com pipocas. Depois comer uma boa pizza.
Embora
estivéssemos em dezembro, ventava muito, chovia forte e o frio incomodava.
Tentando não perder o guarda-chuvas para o vento, eu desci a Rua Halfeld e, em
todos os cinemas já não encontrei ingresso para aquela sessão. A próxima seria
muito tarde. A semana fora desgastante e, embora eu estivesse dormido até
tarde, quase o dia inteiro, meu corpo ainda pedia cama.
Desisti de ir ao cinema e procurei a melhor
pizzaria ali da rua Halfeld. Fiz um pedido de minha pizza preferida e,
solicitei que, antes da pizza, me trouxessem um bom vinho. A pizzaria estava
com poucos clientes e, portanto, não demoraria a ser servido. Confesso que eu
estava mais interessado no vinho do que na pizza, embora estivesse com fome.
Enquanto eu degustava
o vinho eu pensava em minha vida estudantil. Meu pai faleceu muito jovem. Eu
ainda era criança. Quando o meu pai faleceu eu, com apenas cinco anos de idade,
sofri muito. Sofri pelo tanto que ele me amava. A minha mãe guerreira soube me
criar, me educar e fazer de mim um médico e, de meu irmão, um engenheiro. Eu terminara o meu curso de medicina, passara
na prova de Pós-graduação em Cardiologia e, na semana seguinte, eu deveria fazer
a minha matrícula. Por isso não pude viajar para a minha casa como fizeram os
meus amigos de república.
Eis que, na
pizzaria, entra uma jovem, bem jovem, muito bem agasalhada, capa de chuva,
botas de cano longo, um gorro a lhe esconder os cabelos, exceto uma mecha que
descia por debaixo do gorro ladeando o seu rosto divinamente lindo. Ela se
dirigiu ao balcão, fez algum pedido e ali permaneceu em pé.
No mesmo momento em que um garçom
entregava o pedido dela e, ela pagava e se preparava para sair, dois
mascarados, de armas em punho, entraram na pizzaria anunciando um assalto. Um
dos poucos clientes que ali estavam era policial militar a paisana e reagiu.
Sacando a sua arma, ele deu voz de prisão aos bandidos. Eles reagiram. Houve troca de tiros. Os
bandidos morreram. Gritando desesperadamente, os clientes saíram correndo da
pizzaria. Inclusive eu tentei sair, mas, vi que a bela jovem estava caída no
chão e, voltei. Ela estava sangrando muito na cabeça. Eu acabara de fazer o
Juramento médico há apenas um dia. Eu não tinha o direito de sair correndo também.
Em um rápido exame eu tive a impressão de que fora um ferimento superficial,
mas, ela não respondia a chamados e nem a estímulos. Respirava bem e tinha
normais os sinais vitais. Provavelmente, uma concussão cerebral.
O socorro
chegou rápido. Amigos de faculdade
estavam na ambulância. A jovem estava sozinha e, eu me ofereci para acompanhá-la.
Procurei em
sua bolsa algum número de telefone para avisar a família. Achei. Naquela época
não existia telefone celular. Quando chegássemos na Santa Casa eu telefonaria
para a família dela.
A sua Carteira de Identidade me revelou o nome
dela. Era Núbia. E, a idade também. Ela
tinha apenas 16 anos, era uma criança, uma linda criança, apenas uma criança.
Chovia muito e, a sirene da ambulância abria
caminhos no trânsito, que era intenso, na linda Av. Rio Branco, rumo à Santa
Casa de Misericórdia. Para um profissional socorrista da saúde, nada existe de
mais lindo que a sirene de uma ambulância.
No trajeto
ela despertou. Despertou sem saber o que acontecera. Naturalmente. Chegou a
ficar agressiva. Com muito cuidado conseguimos convencê-la a se deixar levar
até o pronto atendimento, até porque ela estava muito suja de sangue. Eu já disse,
o couro cabeludo sangra muito.
Após
rigorosa avaliação clínica, normal, como também uma radiografia de crânio (tomografia
computadorizada ainda era apenas um sonho, não existia) que mostrava que a calota
craniana não fora afetada, apenas o couro cabeludo. O ferimento foi suturado e,
sem ser liberada, a jovem foi embora. Foi embora antes que eu ligasse para a
família dela.
Ela saiu
dali, mas, não saiu de meu pensamento, muito menos o seu nome, Núbia.
Uma semana
depois começaram as aulas do curso de Pós-graduação. Eu me levantei cedo, me
banhei, tomei um rápido desjejum e corri para o ponto de ônibus no Largo do
Riachuelo. Cheguei bem na hora, pois o ônibus universitário dava seta para
estacionar. O ônibus parou. Eu entrei. O
ônibus não estava cheio. Havia vários lugares vazios. Observei que a moça da
pizzaria estava sozinha e tentei me sentar ao seu lado e, dizendo que a cadeira
estava ocupada, ela impediu que eu me sentasse. Observei que ela usava uma
camisa do Curso Técnico Universitário, CTU. Fiquei muito frustrado e, mais
ainda, quando chegamos na Universidade e ela continuava sozinha. Eu desci e ela
continuou, pois, ela deveria descer no último ponto.
Alguns dias se passaram. Eu insistia em
tirá-la de meu pensamento, até porque, além de se tratar de uma criança de
dezesseis anos, ela fora ingrata e deselegante. Mas, ela insistia em não sair.
Estava
acontecendo o torneio Universitário de voleibol feminino. Naquela noite ocorreria
uma semifinal entre Advocacia e Farmácia. Eu seria o Juiz. Eu fazia parte da liga
universitária de ârbritos.
O jogo já
havia começado quando, do alto de minha plataforma de arbitragem, eu a vi
entrando na arena abraçada com um homem.
Parecia mais velho do que ela. Estavam muito alegres e vibravam com fortes
abraços a cada lance disputado na quadra. Não tive muita certeza, mas, pareciam um casal
de namorados.
Quando o
jogo terminou e a torcida estava saindo, eu tentei ser notado por ela, mas não
fui. O time da Advocacia venceu.
No dia
seguinte teria a outra semifinal entre o time do CTU e o da Medicina.
Desta feita eu
estava apenas como torcedor. Antes de começar o jogo ela, estava conversando
alegremente com o seu suposto “namorado”. Logo vi que ela jogaria, estava
uniformizada e, logo entrou para fazer aquecimento. Eu não deveria estar ali. Ela
era muito mais bela, muito mais sensual, muito mais do que eu poderia almejar. Lindas pernas torneadas que terminavam (ou
começavam) em amolduradas nádegas que não se escondiam totalmente em seu short minúsculo.
Muito esbelta. Um tórax sustentando um crânio, ambos, artisticamente desenhados.
Nunca observara que um nome poderia ser tão lindo, Núbia e, uma idade também
linda, mas, duas coisas me incomodavam... (Eu era dez anos mais velho e,
parecia, ela já tinha namorado) .
O meu time,
Medicina, perdeu. O time do CTU foi para final. Enfrentaria o time da Advocacia
que vencera a semifinal anterior. Estranhamente, eu não fiquei triste com a
derrota de meu time. Núbia, a moça da pizzaria, a baleada que eu ajudei a
socorrer e me desprezava, era muito boa jogadora. Também muito contestadora com
as condutas da arbitragem, às vezes, arrogante e agressiva. Mas, havia elegância até em sua agressividade,
ou os meus olhos estavam enfeitiçados por tanta formosura.
Havia algo muito estranho acontecendo comigo.
Eu não sabia se estava apaixonado ou apenas enfeitiçado por aquela divindade em
forma de mulher-criança, ou, criança-mulher. Embora eu quisesse estar
apaixonado, parecia que eu não me importava com o seu “namorado”. Fiquei feliz por
ela. Ensaiei ir parabenizá-la, mas, novamente ela me desconheceu e passou por
mim correndo para um abraço de felicidade de seu “namorado”. Ele era realmente
mais velho do que ela. Aparentemente, nem tanto, mas, era mais velho. Mas, que
importância teria? Eu, não sabia se estava apenas “enfeitiçado”?
Uma semana
depois, em um sábado muito chuvoso, às vinte horas, seria o jogo final entre
CTU e Advocacia. Seria daqui a uma hora. Optei em não ir. Preferi ficar em casa tentando ver uma programação
qualquer na televisão. Ela já devia estar se aquecendo. Ou quem sabe ainda
conversando e se agarrado com o seu “namorado coroa”. Eu tentava ver o filme na
TV, mas, o meu pensamento insistia em estar na quadra e, eu teimava e, o fazia
voltar e se concentrar no filme.
Tocou a campainha.
Fui atender. Eram colegas da Universidade. Vieram me buscar para arbitrar o
jogo. A equipe escalada para aquela noite, ao se conduzir para a quadra, houve
um acidente de trânsito em virtude do forte temporal e todos estavam sendo
medicados na Santa Casa. Era uma emergência. Relutei inicialmente. Parecia que
eu não queria vê-la... ou queria? Querendo, ou não, eu fui levado.
Enquanto nos
dirigíamos para o Centro Olímpico eu cheguei a cogitar da possibilidade de
adiar o jogo, em virtude do temporal que parecia aumentar. Meus colegas
disseram que seria impossível, pois, a quadra estava cheia de torcedores e, era
bem coberta e protegida de qualquer temporal. E, estava mesmo, eu pude ver
quando chegamos. Lotação completa e muito barulhenta.
As duas
equipes, Faculdade de Advocacia e CTU, as duas finalistas, estavam em quadra se
aquecendo. Não houve atraso com a troca da equipe de arbitragem.
Ela estava
lá. Núbia estava lá. Tentei não a observar. Não consegui. Tive que optar em não
a deixar ver que eu a observava. Não sei se consegui.
E, começou o
jogo. E, continuou o jogo. O ginásio era um barulho só. Do alto de plataforma
de juiz, correndo os olhos, via-se que parecia haver apenas torcida do time da
Advocacia, que, aliás, estava ganhando de 2 sets a zero. As moças do time que
estava sendo derrotado, o time do CTU, estavam nervosas, agitadas e, até
confusamente indisciplinadas. Mas, ao contrário de comportamentos anteriores,
ao contrário do que eu estava preparado, psicologicamente, para esperar dela,
Núbia estava serena e, mostrando liderança. Antes de começar o terceiro set, ela conversou
com o técnico longamente e, depois, individualmente com cada uma das colegas em
quadra.
Todas em
quadra. Tudo pronto para o reinício do jogo. Os dois times apenas esperavam que,
como juiz, eu o fizesse, o autorizasse.
O olhar de
Núbia, pela primeira vez em todos estes dias, semanas, ou meses, se fixou no
meu. Obviamente, eu não tentei fazer diferente. Fixei o meu olhar no dela. Nenhum
de nós dois conseguiu entender o significado daquele olhar. Mas, eu a senti
mais necessária ainda em minha vida. Autorizei o início do jogo, agradecido por
estar ali.
O barulho da
torcida era imenso, mas, o time da CTU parecia querer dizer o porquê de estar
ali. Ganhou o terceiro set. Núbia comandou aquela reação jogando
extraordinariamente bem. E, comemorando aquela tendência de recuperação,
vibrando com as colegas em quadra, novamente ela me olhou fixamente. Cheguei a
me sentir desconfortável de emoção e felicidade. Sem tirar os olhos do meu, ela caminhou até
mim e me agradeceu por eu estar ali. Não entendi. Eu fui imparcial. Não fui, em
nada, responsável, pela vitória naquele terceiro set. Mas, sem entender ou não,
começou o quarto set que, magistralmente, foi também ganho pelo time do CTU.
Núbia fora a heroína do jogo nos dois últimos sets. O placar era de 2 a 2
naquele momento.
O tie-break, também,
foi vencido pelo time de Núbia que saiu carregada da quadra. Ela fora realmente
a responsável por aquela virada. Eu pensei que, depois daqueles dois olhares
magicamente fixos, eu teria a oportunidade de falar com ela e a parabenizar.
Mas, isso não aconteceu. Depois de receber a medalha, levantar a taça, ela
correu para o vestiário e, de lá saiu nos braços de seu “amado”. Eu nunca mais
a vi.
Dois anos
se passaram e, sem esquecê-la, eu nunca mais a vi.
Uma certa manhã, eu estava indo para o trabalho
na Santa Casa de Juiz de Fora (eu já terminara a minha Pós-graduação). Parado
no sinal vermelho do semáforo, da Avenida Rio Branco, esquina com a Rua Halfeld,
ao lado do gigantesco e lindo parque do mesmo nome, Parque Halfeld, eu pude
ouvir uma voz de mulher, desesperadamente pedindo socorro. O sinal estava
fechado.
__Socorro, alguém me ajude. Meu pai está
morrendo...
O dever falou mais alto. Quando o dever fala
não se ousa desobedecer. Rapidamente coloquei
o triangulo a alguns metros da traseira do veículo e, nos dois para-brisas, coloquei
chamativos de “emergência médica” que sempre eu tinha no carro. Corri para o
local de onde vinham os gritos. Era ela, Núbia, ajoelhada ao lado daquele homem
que eu pensava ser o seu “namorado”. Não deveria pensar isso naquela hora, mas,
confesso que senti alívio. Era o pai dela. Ela chorava muito.
__Calma,
Núbia, calma. Conte como aconteceu.
__Nós estávamos fazendo a nossa caminhada rotineira,
ele gritou de dor no peito e caiu. Não mais respondeu. Mas, como sabe o meu nome?
__Depois eu falo. Corra no meu carro que está
no semáforo com pisca alerta ligado. No porta-malas tem uma bolsa grande de
emergências. Traga-a para mim e, ao mesmo tempo chame uma ambulância.
Neste momento chega a polícia e, ao se
inteirar do que estava acontecendo, pelo rádio, chamou o corpo de bombeiros que
chegou rapidamente e assumiu o atendimento. Não necessitei usar o meu
equipamento. A ambulâncias do corpo de bombeiros seguiu para a Santa Casa
levando pai e filha. Eu fui no meu carrol.
Quando
cheguei lá ele já estava sendo atendido na Emergência. Subi para o meu plantão
na UTI. Quando passei por ela fui novamente interrogado por ela.
__Como você
sabe o meu nome?
__Você se lembra do Campeonato de vôlei onde
o time do CTU foi campeão? Você estava lá. A torcida gritava muito o seu nome.
Eu era o árbitro. Eu também estava lá.
__ Entendi.
__Mas, eu já sabia seu nome.
__Como já
sabia?
__Quando você foi baleada na pizzaria. Eu
também estava lá. Eu socorri você. Assim que o seu couro cabeludo, que sangrava
muito, foi suturado, você fugiu do hospital. Mas, tenho que trabalhar. Melhoras
para o seu pai.
__Obrigada
por ter atendido o meu grito de socorro e, salvo o meu pai. Obrigada, também,
por ter me socorrido na pizzaria.
Eu disse que
não havia necessidade de agradecer, subi para a UTI e assumi o meu plantão. Havia
poucos pacientes internados e, todos estava evoluindo bem. Quando me passou o
plantão, o colega me adiantou que o paciente que eu atendera no Parque Halfeld subiria
para a UTI, pois, havia sofrido um, infarto agudo do miocárdio.
Assim que o
paciente chegou, já acordado, lúcido e orientado e sem dor, foi monitorizado e
tomado os cuidados iniciais. Quando eu analisei o resultado do cateterismo
coronariano dele, eu não tive dúvida, ele teria que ser operado. Teria que se
submeter a uma revascularização do miocárdio. Pedi para falar com a filha e,
expliquei da necessidade. Fui muito claro com ela e falei sobre os riscos e
benefícios. Núbia chorou muito.
Não demorou
muito e o paciente foi levado para a unidade de cirurgia cardiológica. Em torno
de oito horas depois ele estava de volta e muito bem. Eu deixei a filha entrar
para vê-lo, através do vidro do isolamento, sem que ele a visse para evitar
emoções desnecessárias. Núbia chorava silenciosamente. Eu sugeri que ela descesse
até o Pronto Atendimento para ser medicada. Ela não quis.
Depois de
três dias ele saiu da UTI e foi para o apartamento. Em todo esse período, Núbia
só saía do Hospital para se banhar, se trocar e, retornava.
No partamento,
além da equipe cirúrgica, eu fazia visitação clínica diariamente. Tive muita
oportunidade de conhecer a família, que eram apenas eles, Sr. Fernando e Núbia,
pai e filha. O pai que durante muito tempo eu achei que poderia ser “namorado”.
Eles tinham uma história triste e, outra, linda. Núbia já, naqueles dias, havia me contado as
duas. Quando comentei com o paciente, pai dela, sobre a vida deles, ele me
contou tudo novamente. Disse ele.
__Eu fiquei
viúvo muito cedo. A minha esposa faleceu atropelada. Antes mesmo que eu me
recuperasse da dor da perda, uma jovem senhora que trabalhava em nossa casa,
sequestrou, roubou o meu filho mais velho, com cinco anos de idade. Durante
anos a polícia procurou por ela e não a encontrou, nem o meu filho. Ficou apenas
Núbia. Núbia tinha apenas seis meses de idade. Eu tinha que trabalhar, não
tinha com quem deixá-la. Eu era motorista de taxi.
__Sabe, Dr. Emílio.
A razão de eu ser muito agarrada com meu pai é esta. Ele nunca me deixou
sozinha. Ele retirou o banco do carona de seu taxi, fez ali um confortável
bercinho e, aonde ele ia, eu ia junto. Os clientes adoravam viajar com o “taxi
da bebezinha’, conforme meu pai me contou.
__Eu não tinha coragem de contratar
outra empregada. Eu tinha medo de que ela roubasse a minha princesinha. Nunca a
deixei em creches. Eu queria estar com ela. Quando ela começou na pré-escola, eu a deixava
na escola e ia trabalhar. Ao final da aula eu a buscava, a gente almoçava,
íamos a um parque, ela brincava com amigas e se divertia. Então voltávamos para
o trabalho. Nesta altura, já não era um bercinho e, sim uma confortável
cadeirinha e, ela crescendo, esta cadeirinha também a acompanhava. De repente
ela se transformou em minha ajudante. Não apenas uma “caroneira de taxi”. Só
nos separamos quando ela está em atividades escolares. Eu insisto com ela para
sair e se divertir, mas, ela só vai se eu for junto.
__Bem amigos, eu tenho que ir. Passo novamente
amanhã
para dar alta para você, Fernando. Até mais Núbia.
Núbia me
acompanhou até a porta do quarto. Me abraçou forte e, agradecendo, deu-me um
beijo no rosto. Eu senti que não estava ali. Não sei onde, não sei como, mas,
meus pensamentos se confundiram com aquele beijo.
À noite eu
voltei ao Hospital para ver um paciente, outro paciente. Quando eu ia saindo, a
encontrei no jardim. Ela pareceu muito feliz em me ver. Fiquei surpreso com a
súbita mudança de personalidade dela.
__Dr. Emílio,
que bom ver você longe de meu pai. Hoje o meu pai confirmou a história que eu
já contara. Eu aprendi a não o deixar sem mim. Ele sempre insistiu para eu sair
com amigos, namorar e aproveitar a vida. Mas, e se o meu namorado não
entendesse? Se ele não entendesse, eu teria que deixá-lo, jamais deixaria meu
pai. Eu tenho que confessar algo para você, mas, estou com vergonha.
__ Núbia, faz
parte de minha formação, ouvir, não julgar e guardar segredo. Fale se quiser.
__Eu sempre procurei
me afastar de possíveis namorados. Eu nunca me interessei por ninguém. No CTU (curso
técnico universitário) eu sou muito assediada...
__O seu maior
inimigo é a sua beleza... só de passar perto você assedia alguém. Mas, o que
tem para me falar?
__Eu amo você!....
__Como?... Não
seria por eu ter salvado o seu pai e você está confundindo os sentimentos?
__Há mais de
dois anos, em uma noite chuvosa, eu entrei na pizzaria preferida de meu pai
para trazer uma pizza para ele. Ao entrar meus olhos cruzaram com alguém que
estava tomando vinho e, me assustei com uma sensação estranha que se apossou de
mim. Senti o risco de perder o controle de meus pensamentos. Essa pessoa era
você. Quando eu me despertei no hospital e vi você ao meu lado, o medo daquele
sentimento se apossou de mim. Eu não tinha aquele direito. A companhia de meu
pai era mais necessária. Eu, pela primeira vez, me senti frágil, pela primeira vez
eu não consegui rejeitar aquele sentimento. Saí correndo em defesa de minha única
responsabilidade. A responsabilidade de não sair e deixar a solidão abraçar o
meu pai. O meu pai que nunca me abandonou, que apenas demostrava felicidade me
abraçando criança, me abraçando adolescente, me abraçando adulta. Ele nunca
desabafou, mas, a saudade da minha mãe e de meu irmão desaparecido não deixavam
o seu coração sorrir, apenas os lábios o faziam para me confortar. Eu bem
sabia.
Depois, no ônibus universitário, assim que você entrou, eu
fui novamente assaltada pelo medo de sua presença e... menti dizendo que
estaria ocupado aquele assento. Muito tempo depois, no Ginásio de Esportes da
Universidade, naquele torneio de vôlei feminino, por duas vezes eu senti que
você estava se dirigindo a mim. Creia, a minha vontade era parar e esperar você,
mas, eu despistava e passava direto. O meu coração ordenava esperar você,
agarrar e beijar intensamente você, declarar o amor que o seu olhar rápido implantou
em meu coração quando eu, toda molhada pela chuva, entrava naquela pizzaria. No
entanto, o meu cérebro vencia os desejos do coração e, eu corria para os braços
de meu pai.
__Que eu
pensava, Núbia, que ele era seu namorado...
__E era, de
certa forma, pois, eu nunca quis ter um namorado que me afastasse dele.
__Você é
muito linda, mas o seu coração é mais belo do que o seu corpo.
__E mais.
Você arbitrando aquela final de vôlei onde o meu time foi campeão, eu não
conseguia desviar o meu olhar de você. Você parecia não me ver. Apenas duas
vezes os nossos olhares se cruzaram e, aquilo foi muto mais felicidade do que o
título de campeã.
__Núbia,
naquele jogo, parecia que você jogava sozinha. A torcida só gritava o seu nome,
você não parava, incentivava as colegas de quadra, não errava um lance sequer.
Não posso acreditar que você estivesse desligada do jogo.
__Eu fazia um
esforço enorme para ajudar o meu cérebro a derrotar o meu coração. Quando
estávamos vibrando e sendo cumprimentadas pelas pessoas em volta, eu tive medo de
que você fosse me cumprimentar, como foram os juízes de linha, autoridades
presentes e organizadores do torneio. Eu tive medo de não ouvir o que você
fosse me falar e calar a sua boca com um longo beijo de amor e...
__Saiu do
vestiário carregada por aquele homem, que, na minha cabeça, era seu “namorado”.
__Sim, sim.
Por que, naquela manhã, no ônibus universitário, você não se assentou
atrevidamente ao meu lado e, me beijou? Eu queria isso?
__ Como assim?
Como beijar você à força? Você era uma criança de dezesseis anos, apenas.
__Não, não.
Eu era uma mulher que teve o coração invadido, flechado por um “índio
pequenino”, eu era um coração explodindo de amor sem poder amar.
__Eu já era
um médico e, você, uma linda criança. Eu jamais, embora quisesse, jamais
beijaria você. Eu, se o fizesse, seria linchado pelos universitários que
estavam naquele ônibus.
__Não, não.
Eu não deixaria você ser linchado. Mais uma vez, obrigada por ter salvado a mim
e ao meu pai. Você pode pensar o que quiser, virar as costas, ir embora e,
nunca mais me ver, mas, você deveria ter me forçado a fazer o que eu vou fazer
agora...
E, agarrando
fortemente Dr. Emílio, ela o beijou na boca freneticamente. Ele respondeu àquele
beijo com a mesma intensidade e paixão. Ambos tremiam de felicidade por terem
conseguido libertar aquele sentimento que, os maltratava ao mesmo tempo que os enchia
de sonhos e fantasias. Estranhamente, ambos sentiram remorso de terem se
beijado. Ambos se sentiram envergonhados de tê-lo feito. Ela permaneu abraçada
com Dr. Emílio. Tremia. Ele também. Silenciosamente se afastaram e, Dr. Benício
se dirigiu para o carro. Núbia voltou para o quarto do Hospital onde seu pai
estava internado. Ele dormia. Ela se banhou e se acomodou para descansar.
Fernando,
pai de Núbia, o paciente infartado, recebeu alta hospitalar muito bem recuperado.
Dr. Emílio já deixou agendado o dia da revisão, para dali a duas semanas.
No dia marcado para o retorno, o paciente
estava muito bem. Após receber novas orientações médicas Sr. Fernando e a sua
filha Núbia convidaram Dr. Emílio para almoçar na casa deles, no final de
semana seguinte.
__Será um
prazer, mas, neste final de semana meu irmão virá me visitar. Depois a gente
recombina, não?
__Não, não. Pode
levar o seu irmão também. Ele mora onde? Você tem muitos irmãos?
__Não. Apenas
este. É um irmão adotivo. Nós morávamos em uma fazenda. Minha mãe, já viúva,
faleceu há um ano. Eu e meu irmão resolvemos vender a fazenda e ele vir morar aqui.
Ele se formou em Engenharia este ano e, já está empregado aqui em Juiz de Fora.
Não temos mais parentes. Acho que não temos direito de abusar da amizade. Não
podemos incomodar.
__Não será
incômodo. Será um prazer. Leve o seu
irmão com você. Srá um prazer conhecer o irmão do melhor médico do mundo.
Esperamos vocês, certo?
Concordaram
com o encontro.
A semana passou
rápido. Dr. Emílio e seu irmão adotivo chegaram à casa de seu paciente e de sua
filha, a apaixonante, Núbia. Quando desceram do carro, em frente à casa,
Fernando, o irmão adotivo de Dr. Emílio parou pensativo. Olhou silenciosamente
a casa, a rua, as árvores do lugar. Parecia curioso, surpreso e angustiado.
__O que foi,
Rafael? Parece assustado!
Neste
momento Núbia abre a porta da casa e, assustada, vê o irmão de Dr. Emílio passar
por ela, sem a cumprimentar, entrar casa adentro, correr quarto por quarto, depois
na cozinha e na área do quintal. Depois chorando voltou para a sala deixando
Sr. Fernando assustado. Ele chorava e gritava, que conhecia aquela casa. Depois
pegou um porta-retrato em cima da mesa, olhou demoradamente, beijou e abraçou o
porta-retrato chorando copiosamente.
__Eu conheço
esta foto. É minha mãe com a minha irmãzinha no colo. O que aconteceu comigo,
meu Deus? Agora entendo por que eu sonhava tanto com esta casa, e, com esta
foto.
Todos ficaram
sem ação, atônitos, parados sem saber o que pensar. Dr. Emílio foi o primeiro a
tentar entender.
__ O que
aconteceu meu irmão. Fernando, o que está dizendo, meu irmão. Não chore Fernando.
__Fernando? Fernando
é o nome de meu filho... meu Deus! É você, meu filho?
__Papai? Meu papai. Como você envelheceu! O que aconteceu
comigo, meu pai? Onde está a minha bebezinha?
Núbia e o
seu pai caíram num choro descontrolado e, abraçaram fortemente o irmão de Dr.
Emílio.
__Papai,
minha irmã, o que aconteceu comigo? Não me lembro seus nomes
__Esta é
Núbia, a sua bebezinha linda. Eu, meu filho, batizei você com o mesmo nome meu.
Como você, eu me chamo Fernando.
Enquanto
eles choravam copiosamente, abraçados, Dr. Benício tentava acalmar aquele
ambiente de emoção extrema, temendo o coração de seu paciente. Depois de longas
interrogações, aconchegos de saudades e paixão, o irmão adotivo de Dr. Emílio
quis saber como tudo aquilo acontecera.
__Meu Deus,
meu Deus... o que aconteceu comigo...
__Fernando,
meu filho. A nossa empregada de muitos anos roubou você aqui de casa. Vizinhos a
viram sair com você no meu carro. Eu tinha saído para levar a bebezinha ao
médico. A sua mãe havia sido atropelada e morta, havia poucos dias. Quando
cheguei em casa não encontrei meu carro, as suas roupinhas e as nossas malas. A
polícia vasculhou este Brasil inteiro sem sucesso. Muito tempo depois, meu
carro foi encontrado em um rio em Minas Gerais. Ela, a empregada, estava dentro
do carro, morta. Seu corpinho, meu filho, nunca foi encontrado.
__Emílio,
meu irmão, como eu fui parar na fazenda de sua mãe?
__Eu sei tudo
que aconteceu. A minha mãe me contou toda esta história várias vezes. Eu era muito
criança quando você foi morar conosco. Nós tínhamos cinco anos.
__Como
assim, fui morar com vocês?
__Várias
vezes a minha mãe me contou esta história. Segundo ela, da Janela da casa
grande da fazenda, ela viu um carro parar na estrada, uma jovem senhora tirar
uma criança do carro e, após deixá-lo chorando na estrada, partiu em disparada.
Segundo a minha mãe a criança chorava muito. Esta criança era você, Fernando.
Você parecia desesperadamente triste. Parecia estar chorando a muito tempo.
Você, meu irmão, se agarrou tanto ao carinho de minha mãe que ela ficou receosa
de entregar você para as autoridades. Ela nunca imaginou que você pudesse ter
sido sequestrado. Ela imaginava que fora a sua mãe que o abandonara. Ela teve
medo de que você fosse levado para um orfanato. Meu pai morrera alguns dias
antes, ela estava muito sensível. Ela achou em você uma forma de esquecer a
morte de meu pai, dizia ela. Ela ficou com você para ela, para nós. Agora, meu
irmão, eu entendo por que você estava sempre triste, pensativo. Você tinha
muitos pesadelos e acordava chorando.
__E como
você explica eu ter o mesmo nome de meu pai?
__Segundo a
minha mãe, você foi abandonado sem nada. Tinha apenas, no bolso, a sua certidão
de nascimento. Você rinha fome e sede, e, chorava muito.
Todos se
abraçaram agradecidos a Deus. Era véspera de Natal. Alguns dias depois seria
Natal. Pai, filho e filha receberam o melhor presente de Papai Noel que
poderiam querer. Programaram a maior festa de Natal já vista. Todos os vizinhos
se encarregaram de enfeitar toda a rua.
__A
recuperação da felicidade perdida daquela família, começara há mais de dois
anos, em UM DEZEMBRO na pizzaria... a recuperação da felicidade daquela família
se concretizou, de verdade, em UM NOVO DEZEMBRO.
E o Menino
Deus nasceu de verdade em todos os corações. Eu e Núbia nos casamos. Ela fez
questão de morar na casa de seu pai... para protegê-lo e para compensar o tempo
perdido junto ao seu irmão.
Foi um
momento ineaquecivel aquele “NOVO DEZEMBRO”.
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