domingo, 3 de março de 2024

  

  

  

  

  

  

  

  

  

   QUANDO EU A VIA, O AMOR EXPLODIA EM MIM

  

  

  

 

  

                    Conto de Dr. Afrânio Luiz Bastos  



 

  

  

  

  

  

  

  

  

  

  

  

Dedicatória  

  

À minha esposa, Fátima, presente de Deus para mim e para meus filhos  

À minha irmã Therezinha Bastos sem a qual eu não seria médico  

Aos meus netos Ana Júlia, Bernardo, Benjamim, Thomas, Micaela e a outros que desejo que apareçam  

  

  

  

  

  

   

   

   

Século XIX.

Em um dia qualquer de um destes anos abençoados de Nosso Senhor Jesus Cristo.   

O sol já cansara de trabalhar naquele dia e em algumas horas depois seria substituído pela lua que, naquela noite, seria cheia e, certamente bela.   

Após a lida do dia, sentado em uma pedra do quintal, João Francisco receberia a lua bela com os cânticos mágicos de sua viola de pinho que o seu pai, já falecido, fabricara e lhe dera de presente no Natal.   

Ele terminara o trabalho na roça. Doía-lhe as mãos calejadas pela enxada na capina e plantio de milho.  Chegou em casa. Tirou do dedão do pé, com uma agulha de costura de sua mãe, depois de queimar sua ponta no fogo do fogão a lenha, um bicho de pé que pegara no chiqueiro de porcos do seu João Fernandes.   

Pediu à sua mãe para ir pescar no córrego das pedras redondas em uma cachoeira do lugar. Mesmo sabendo da importância da pescaria para levar o complemento de alimentos para a mesa dela, viúva jovem, e seus cinco filhos ela ordenou que primeiro fosse à moenda do sinhô João Fernandes, dono da fazenda onde moravam, levar milho para trocar por milho em pó que seria usado no cuscuz.  

Obviamente que ele obedeceu. Pegou um pesado saco de milho que ele mesmo descascara e debulhara e foi em direção à fazenda. Enveredou-se pelo caminho espinhento e repleto de perigos onde poderiam se esconder, entre outros, cobras peçonhentas.    

Na moenda do Sr. João Fernandes um fila grande se formava, cada um esperando por sua vez. Era forte o cheiro de suor, poeira e mato que se misturavam naqueles corpos. Doía-lhe as costas sob o peso do saco de milho, mas ele esperava pacientemente, pois necessitava do trabalho da moenda.  Era feita uma troca. Sempre deixavam um terço do milho para pagar o parco milho em pó que levavam para casa. Uma troca desonesta que revoltava a todos que dependiam daquela moenda exploradora. Eles não tinham saída, pois, não era deles a terra em que plantavam e, muito menos, tinham outra forma de tornar em pó o milho que os alimentava.   

De longe João Francisco observava a menina Bárbara que na porta da moenda providenciava o acerto da troca enquanto sofridos escravos faziam a moedura dos grãos. A menina Bárbara estava de férias e era afilhada do dono da fazenda e, da moenda. Ela estudava farmácia em Ouro Preto e iria se formar naquele ano. Era linda, muito linda. Bárbara e João Francisco cresceram juntos naquelas colinas.   

Ainda menina o padrinho dela inventou esta ideia de estudar e ela foi levada, sobre lombo de burros, pela estrada poeirenta para a cidade de Ouro Preto. Raramente ela voltava ali.   

Esta semana seria uma época especial, pois seu padrinho, João Fernandes, estava doando uma terra ao distrito, ao lado do Rio Matipó, na sua reta maior, para se iniciar um povoado. Seria feita uma comemoração e Bárbara viera para a festa.  

João Francisco nunca mais a tinha visto, embora desejasse isso todos os dias e noites de sua vida.  Cresceram juntos, brincaram juntos, estudaram juntos na pobre escolinha da colina.  

João Francisco se apaixonou por ela.  

Sua imagem linda, embora longe e sem se lembrar de um pobre coitado como ele, não saía de sua mente. Ela nem imaginava o que se passava nos pensamentos e nos sentimentos dele.   

João Francisco a recordava caminhando perigosamente em alta velocidade em pelo de cavalo, sem arreio, sem sela. Ela, lembrava ele, parecia uma deusa ou uma fada cavalgando nos pastos de capim gordura desfilando e desafiando as altas colinas. Das altas colinas uma brisa fria descia e balançava seus cabelos de rebeldes cachos amarelos.  Brilhantes   cabelos cor do sol lindamente a deslizar em seu rosto angelical.   

Ela viu João Francisco na fila e foi até ele cumprimentá-lo.  Ele sentiu vergonha de si mesmo. O perfume dela nunca se afastou dele. Ele se lembrou de quando eram crianças e ela o ensinava a escrever. As suaves mãos dela conduzindo as suas, grosseiras e desajeitas, a ensinar-lhe a escrever o bê-á-bá e o a-b-c. Seu simpático sorriso largo, sempre lindo, continuava a lhe enfeitar o rosto.   

Como é difícil tentar esquecer esta paixão de sua vida. Como é difícil pensar em esquecer aqueles dias lindos. João Francisco não deixa de pensar nela e, a cada dia parece que seu amor aumenta mais, como também aumenta a distância entre eles. Ele continua sem cultura e ela cada vez mais estudada. Ele não devia tê-la amado. Acha até que foi atrevido e irresponsável quando o fez, mas, é tarde demais agora para controlar o seu coração. Ela se aproveitou de sua simplicidade, enfiou suas lindas mãos em seu peito amolecido e de lá arrancou seu coração, cravou-lhe uma flecha e o entregou a um anjo pequenino que o escondeu ao longe das colinas azuis.   

Um amor doentio tomou conta de seu ser e, aquele amor proibido estava ali, era ela. Ela foi até ele. Ele estava sujo e cheirava mal pelo suor do trabalho desde madrugada alta. Ela, elegantemente vestida com roupas de cidade, suavemente perfumada, olhos cheios de vida e o mesmo lindo sorriso largo. Ele não sabia se ficava feliz se contentando só com aquilo ou frustrado e triste por não merecer mais.  Ela tocou as suas mãos calejadas e sujas, fazendo o seu coração explodir de amor. Ela lhe perguntou como estava ele. Ele respondeu com respeito e educação. O seu já falecido pai lhe ensinara a conversar bem.

Quando eram crianças, lá na escolinha da serra, antes de Bárbara ir para a cidade grande, enquanto brincavam, ela o corrigia e o ensinava a falar. Também lia os livros do monsenhor João Facunto Chaves que, antes da construção da primeira capela, vinha algumas vezes rezar missa na casa grande da fazenda. Nos horários das missas, no terreiro descalço, eles se amontoavam sentados no chão puro juntos com índios Puris e velhos escravos doentes para ouvir a palavra de Deus.   

        Voltando à realidade conversaram um pouco e ela voltou para a sua atividade na moenda.    

        Chegou a vez do milho de João Francisco ser moído, e foi...  

         Após pegar o pó de milho que a autoridade lhe delegava em troca pelo trabalho da barulhenta moenda movida por água corrente, ele saiu, deixou em casa junto com um maço de couve que  pegara na casa de seu Monteiro em troca de um punhado do pó de milho que  levava. Seu Monteiro mandou que Maria Francisca lhe desse uma cuia d'água para lhe abrandar a sede. Ela, enquanto derramava a água fresca na cuia de coité, olhava João Francisco emocionada e desejosa. Ela gostava dele e, gosto fazia toda a sua família para o casamento. Ele não conseguia dar a ela nenhuma esperança, pois, o seu amor impossível era todo de Bárbara. Ela dizia que se João Francisco não a quisesse de verdade ela iria para o convento ser freira.  

         João Francisco pegou a sua vara de pescar, arrancou com o enxadão algumas espertas minhocas no quintal e caminhou rápido por entre o mato e o capim alto para pescar lambari  no rio que se formava no desaguar de uma cachoeira das proximidades. Sabiás selvagens cantavam alegremente em seus ninhos no pé de angá. Canários- da-terra embelezavam a tarde com seu lindo cântico enquanto suas fêmeas colhiam pequenas minhocas nos barrancos do riacho barulhento. Dois filhotes de coelhos brincavam no capim alto indiferentes ao cansaço do dia que findava e à noite que se anunciava linda. Ainda era crepúsculo. O anoitecer chegava e, lentamente, empurrava o sol para detrás dos montes azuis.

         Quando ele estava chegando, ouviu risos no remanso da cachoeira. Caminhou rápido afastando frágeis ramas de bambu e viu dois jovens índios puris agachados e olhando excitadamente ansiosos. Voltou-se para o lago do remanso e viu duas moças nuas nadando indiferentes a tudo e a todos. Uma delas era Bárbara e, a outra, uma escrava da família que lhe servia de dama de companhia, tão moça quanto Bárbara. Ele já as vira outras vezes ali se banhando. Sentiu um ciúme infernal e partiu para cima dos índios para impedi-los de continuar olhando e travaram uma briga tamanha. Enquanto ele lutava com um deles, o outro correu e, roubando as roupas das duas moças e, fugindo silenciosamente, ele sumiu capoeira adentro. João Francisco e o outro índio puri se machucaram muito e saíram se xingando. O índio que com ele lutava, também correu mato adentro esquecendo e deixando para trás uma fieira grande de lambari que havia pescado. Enquanto isso, um menino escravo já buscara novas roupas para elas na casa grande da fazenda.  

João Francisco voltou para casa onde a sua mãe o esperava com o complemento do jantar. Ele limpou bem limpo lambari por lambari e os fritou bem fritinhos na quente banha de porco. Um gostoso mingau de couve, cuscuz de milho e lambari frito foi o jantar.  Seus irmãos eram amigos, felizes e brincalhões. Conversavam bastante e davam muitas risadas.  Comiam com vontade e, com gostosa fartura, aquela comida pobre.  

 João Francisco acendeu as lamparinas de azeite. Sentou-se com a sua viola de pinho numa pedra junto ao terreiro. Músicas lindas e apaixonadas saltavam das cordas de sua viola. As doces melodias se espalhavam molhadas pelo sereno da noite do lugar e voavam com o vento seguindo rumo à imensidão. Parecia até que as estrelas "lumiavam" mais o chão e se afastavam para deixar a lua cheia o olhar mais de perto.   

De repente, João Francisco foi abordado por um policial o intimando a ir ao posto policial para depor. Um índio puri o denunciara como se ele tivesse roubado as roupas de Bárbara e de sua escrava no remanso da cachoeira. João Francisco negou tudo e não aceitou assinar o depoimento. Apanhou muito do policial, ficou todo marcado de borrachadas do cassetete do policial, mas, não assinou. Ficou preso naquela noite, todo doído e sangrando, mas não assinou por uma coisa que não havia feito.   

Pela manhã o policial, o mesmo, só havia ele no povoado de São João do Rio Matipó, abriu a porta da cadeia e o soltou praguejando ameaças por ele ter se negado a assinar o depoimento. João Francisco já estava  na rua poeirenta quando, da porta da cadeia, o policial gritou com voz firme e alta:  

__Agradeça à madame Bárbara, pois, foi ela que lhe mandou soltar.   

Curiosos o rodeavam e comentavam seus machucados e a sua humilhação. Chorando, a sua santa mãe veio recebê-lo e o escorou na volta para casa. Ao passar pela porteira que dá acesso ao terreiro ele desmaiou. Desesperados ela e dois de seus irmãos o carregaram até o barraco e o deitaram em uma rede limpa. Trocaram cuidadosamente a sua roupa ensanguentada e cobriu as lesões com uma pasta de confrei.   

A notícia se espalhou pelo povoado. Seus amigos vieram visitá-lo. Todos o conheciam bem e, mais, sabiam do seu amor pela filha da Casa Grande. Apostavam que não fora ele. Um deles chegou a questionar por que ele não reagiu e não lutou com o policial. Teria sido pior e ele teria que fugir, pois, outros policiais, certamente, seriam enviados da "freguesia" de Abre Campo a ajudá-lo a manter a ordem e o respeito à autoridade.   

João Francisco já se sentia bem por não ter assinado o depoimento no mal escrito livro de registros e ocorrências.   

Neste instante chegou uma escrava de Bárbara com uma "encomenda" para ele. Disse a escrava:  

__A senhorita Bárbara ficou sabendo do ocorrido e mandou este chá que ela mesma fez para voismicê. É uma decocção de confrei com água e vinho e serve para sarar a dor e a inflamação. 

 João Francisco agradeceu e a escrava saiu apressada. Mesmo antes de tomar aquele chá ele já se sentiu melhor. Fora feito e mandado pela sua amada. Ela fora a causa da sua prisão e das suas lesões. Parecia que se importava com João Francisco, o que lhe fazia muito bem saber.  

          Continuava a vida como Deus a determinou. Já dois anos haviam se passado. Alguns alqueires de terra foram doados pelo padrinho de Bárbara ao longo do trajeto mais reto do rio Matipó. Ali se construiu uma capela, que levou todo este tempo para ficar pronta, em homenagem a São João.

 

          Na construção da capela João Francisco trabalhou duro, como voluntário, ao lado de alguns amigos, sem nada receber. Trabalhavam às noites, sábados e domingos, até deixarem pronta a capela de São João Batista. Monsenhor João Facunto Chaves passou a rezar diariamente na capela e não só ocasionalmente como fazia antes na Casa Grande da fazenda.  

         Era junho, época de festas juninas, dia de São João, e uma grande festa foi preparada para aquele sábado. Bárbara já estava formada e trabalhava no lugarejo. Vários amigos dela vieram da cidade grande em lindos cavalos marchadores e estavam hospedados na Casa Grande da fazenda. João Francisco morria de ciúmes dos amigos dela e chegava a se deprimir e a se odiar por não ter qualidades para disputar o seu amor.  

         Fora uma grande festa. Bandeirolas coloridas de papéis cortados, amarradas em barbantes entrelaçados, completavam um cenário festivo. Ao fundo o mastro, com a imagem de São João Batista, personalizava a comemoração. De muito longe, da Diocese de Mariana, vieram a banda de música e os congados, sendo todos os instrumentos transportados por tropa de burro e os músicos e dançarinos em lindos cavalos de raça. Ficaram todos hospedados na fazenda de seu João Fernandes. Doía-lhe novamente o ciúme de sua desejada Bárbara pelos rapazes que se hospedavam na casa de seu padrinho onde ela costumava frequentar.  

         Grandes valetas foram cavadas no solo onde troncos se queimavam em brasa assando centenas de grandes pedaços de boi transfixados por espetos de bambu. Todos do povoado comiam sem economia aquela oferenda do padrinho de Bárbara. Sanfoneiros se postavam noite adentro no ritmo de músicas de época. Violeiros apaixonados faziam as cordas de seus instrumentos levarem as suas mensagens de amor   às caipiras virgens do lugar.  Até mesmo João Francisco mandou a sua mensagem, não só tocando, mas, também cantando. As cantatas dele eram juras de amor para a sua doce Bárbara que nem ali estava. Talvez bastante ocupada com os seus convidados na casa grande da fazenda.    

          No dia seguinte foi o tempo de se recuperar da ressaca da festa. Ninguém faltou à missa das dez naquele lindo domingo de sol. João Francisco e seus cinco irmãos, juntamente com a sua mãe, voltavam famintos para casa depois da demorada homilia (como dizia o padre).            

          Quando estavam atravessando a porteira, quase foram atropelados por vários cavaleiros. Talvez uns sete ou oito, não se sabe ao certo, que passaram em disparada gritando desesperados que estavam sendo perseguidos por uma onça. Assim como chegaram sumiram na curva do morro. Logo em seguida uma linda voz conhecida passou a galope, em seu cavalo de raça, gritando loucamente por socorro. Logo atrás, a perseguí-la, uma onça pintada gigantesca, rugia seu ruído mais ensurdecedor. O cavalo de Bárbara tropeçou atirando-a no poeirento chão de terra batida deixando-a à sua sorte, frente ao gigantesco e faminto felino. Era ela, a Bárbara bela tão amada e desejada, tentando se levantar. A onça, ameaçadora, caminhava lentamente em sua direção estremecendo o terreiro com seu rugido mais forte. Necessitando matar a sua fome, o gigantesco felino já tinha certo a sua desprotegida e fácil refeição. Angustiado, João Francisco não sabia o que fazer. Ele não podia perder a sua amada mesmo ela o desconhecendo e, já que era desconhecido, por que continuar vivo. Ele só tinha um facão na cintura. Quando deu por si já estava pulando em cima da onça e, quase irresponsavelmente, agarrando-a pelo pescoço e deferindo-lhe repetidas facadas com toda a força de seus musculosos braços. Atirado ele foi ao chão e pareceu sentir o peso daquele feroz animal sangrento a lhe morder os braços e o tórax. João Francisco gritava de dor com as mordidas da pintada, mas, não deixava de desferir nela repetidas e certeiras facadas. Já quase desfalecido, ouviu-se um tiro e o gigantesco animal caiu morto em cima dele.   

          Quando deu por si, ele estava em uma cama de verdade (nunca havia deitado numa), na casa grande. Alguém lhe dera banho e a sua amada farmacêutica cuidava de suas feridas. Com linhas comuns bem fervidas, ela "costurou" as suas lesões maiores. O mesmo amassado de folhas de confrei era usado nas feridas. Repetidas doses de chá quente de confrei com água e vinho lhe eram dadas. Compressas de água tentaram lhe aliviar a febre. Por muitos dias permanecera desfalecido e, conforme lhe contaram depois, delirando com a febre que teimava em não ceder. A farmacêutica Bárbara não se desligava dele. João Francisco sentiu medo que, em seus delírios, lhe tenha mencionado o nome. Quando teve condições de ir embora vários dias depois, quero dizer muitas semanas depois, João Francisco agradeceu envergonhado por não ter como pagar. João Fernandes lhe respondeu:  

         __ Meu amigo, meu amigo. Se aqui alguém tem que pagar alguma coisa somos nós. Você se arriscou para salvar da morte certa a minha menina Bárbara. Os amigos dela lá da cidade correram todos e a abandonaram à própria sorte. Se não fosse o Chico caçador você teria morrido. Fiquei tão emocionado com sua atitude que dei um pedaço de minha terra para sua mãe plantar uma horta e criar alguns porcos e cabras. Mandei fazer também uma casa decente para vocês com quartos grandes e camas para todo mundo. Tudo isso é muito pouco pelo que você fez por nossa família. Vá com Deus.  

         E continuou ainda seu João Fernandes:  

          __ Que mais eu posso fazer por você em agradecimento?  

João Francisco olhou fixamente nos olhos de Bárbara a quem só por prêmio poderia pretender o seu coração, se quisesse um. Não bastava só ele a querer. Também não seria bom se ela o quisesse por dó, por compaixão ou por agradecimento.  

         Um carro de duas juntas de bois o levou para casa, agora um pouco mais longe. A sua mãe estava com ele. Não saíra de seu lado durante todas aquelas semanas. Alguma parte de seu corpo ainda doía quando entrou em sua casa nova, que era bem bonita e confortável. A sua mãe merecia e, também os seus irmãos. Eles já, enquanto João Francisco estava moribundo, plantaram verduras e legumes na horta. Já ordenhavam as cabras e o milho engordava três porcos no chiqueiro. Galinhas corriam pelo quintal que não era pequeno. Teriam uma vida mais segura e tranquila, se  soubessem manipular o que lhes foi dado. Certamente saberiam, pois queriam melhorar de vida. Ele, sua mãe e seus irmãos estavam constrangidos de aceitar “aquele” pagamento em troca da vida da afilhada do fazendeiro.  

          Depois de mais recuperado eles foram lá conversar com João Fernandes, padrinho de Barbara e dono da fazenda, sobre o constrangimento que a doação lhes causou.  Saíram de lá convencidos de que aquilo não era nada frente à fortuna do seu João Fernandes, sem falar no sacrifício de quase morte de João Francisco. Voltaram para casa menos desconfortados.  

         No dia seguinte era domingo. Um frio domingo de fim de inverno. Chovia. Chovia muito. Enxurrada e barro lamacento dificultavam a todos de caminhar pelas ruas descalças. Mesmo assim não faltaram na missa da capela. Monsenhor João Facunto Chaves fez uma linda homilia. Ao final da missa ele pediu aos fiéis que rezassem em agradecimento a Deus pelo restabelecimento de João Francisco. Ele ficou emocionado pela vibrante oração daqueles amigos humildes.   

          João Francisco deixou que todos saíssem. Permaneceu ajoelhado. Ainda sentindo alguma dor, rezou ao seu santo protetor em agradecimento não só pela sua vida, mas, pela gratidão do padrinho de sua amada de facilitar a vida de sua mãe e de seus irmãos.   

          Monsenhor João Facunto, quando saía, foi até onde ele estava, sentou-se ao seu lado com o cuidado para não interromper a sua oração. João Francisco falou primeiro:  

         __ Obrigado monsenhor pela linda oração por minha recuperação. Fiquei emocionado com a resposta de nosso povo acompanhando a sua reza.  

        __ Meu filho, meu filho... Somos todos irmãos. Além disso, você é um filho de Deus e, saiba, um filho de Deus muito especial, muito amado, muito querido por nosso povo.  

        __ Padre, o Senhor me conhece desde menino. Muito raramente o Senhor vinha rezar missa aqui, ainda no terreiro da casa grande da fazenda, e eu sempre estava lá aprendendo a “falar certo” como o senhor dizia. Como o senhor me conhece sabe que eu não estou confortável com o pagamento que seu João Fernandes deu à minha família pelo que aconteceu.  

        __Não, não! Claro que não! Ele nada lhe pagou, pelo contrário. Pelo contrário meu filho, ele enganou você e tentou abafar seus nobres sentimentos. Eu estava a todo o momento ao seu lado, durante todo o período mais grave de seu restabelecimento. A febre parecia querer consumir você. Você delirava e falava alto e, em todo momento, você declarava a sua paixão por Bárbara. Delirando você descrevia cada facada que dava na grande onça pintada e sempre gritando que amava Bárbara e que não a deixaria ser ferida ou maltratada. Sua amada Bárbara não saía de seu lado e ela chorava muito quando ouvia o nome dela de sua boca. Seu João Fernandes, com o prêmio que deu, só quis compensar e afastar de você outras futuras pretensões. Se você realmente gosta de Bárbara, se você quer de verdade a sua amada, meu filho, só tem um caminho. Vá para a cidade grande estudar.  

         __Como, monsenhor? Como?  

         __Só depende de você querer. Tenho amigos em Ouro Preto que podem lhe dar um ofício e, ao mesmo tempo, lhe abrir horário para estudar. Agora você pode provar que ama Bárbara de verdade. Estudado você estará no mesmo nível dela. Seus irmãos já têm facilidade para se virarem sozinhos. E, você se formando, poderá ajudá-los mais tarde, certo?  

         __Vou conversar com meus irmãos e com a minha mãe e volto a falar com o senhor.  

         João Francisco voltou para casa e, no trajeto de volta, a sua mente trabalhava a proposta do padre. Pela tarde, Bárbara passou na casa dele para revisar os seus ferimentos. Estavam ótimos. Ela aproveitou para opinar sobre a sua ida para a cidade grande para estudar. Ela até lhe deu o nome de um ourives e joalheiro amigo dela dizendo que ele não deixaria de ajudá-lo. Já ali mesmo escreveu uma carta de apresentação. Ela lhe desejou boa sorte e foi embora.  

 Sabendo que poderia ser mesmo mais uma maneira de se aproximar de Bárbara, tendo cultura igual à dela, podendo conversar no nível que o dela, João Francisco decidiu ir. Também, depois de formado, poderia ajudar os seus irmãos e descansar a sua mãe da lida diária.  

Enfrentou uma aventura até então desconhecida. Uma longa viagem em um burro de carga que a igreja lhe emprestara. Enfrentou poeira e chuva pelo caminho. O monsenhor lhe dera algum dinheiro para ele pernoitar em alguma pousada nas noites daquela longa jornada, mas, ele preferiu guardá-lo para usar em seus estudos.   

Ele foi muito bem recebido pelos amigos de Bárbara. Parece que ela era mesmo muito querida deles. Passaram a tratá-lo como herói quando souberam do seu feito para salvá-la.  

          João Francisco estudou e trabalhou muito. Terminou o segundo grau e ingressou na Escola de Minas e se formou em engenharia.  

          Voltou para casa depois de oito anos. Encontrou todos bem em sua casa. Todos estavam muito felizes e orgulhosos com a sua formatura. João Francisco ficou alegre porque todos progrediam no trabalho na roça e cresciam junto com o crescimento do povoado de São João de Matipó.

            Ele teve medo de perguntar pela sua adorada Bárbara. Não esperaram pela sua pergunta. A sua mãe disse que ela se casara. O nosso novo Engenheiro se calou. Ele não deveria sentir isso, mas, chegou a ter muita tristeza, uma enorme frustração, na verdade, ódio. Perdeu a fome e agradeceu quando a sua mãe o chamou para almoçar. Entrou para o banheiro para que ninguém o visse chorar. Banhou-se para tirar o pó do caminho.  

          Tentou esquecer e descansar um pouco e não conseguiu. Montou seu cavalo de raça trotador, sim, agora ele tinha um. Foi até a capela agradecer ao Monsenhor por ter feito dele um engenheiro.   

Enquanto o seu cavalo o conduzia pelas ruas da vila, ele programava voltar para Ouro Preto. Não tinha mais o que fazer ali.   

Observava, passando pelas ruas, melhorias no comércio local. Pode ver uma loja de roupas, uma venda de secos e molhados. Em um bar, alguns antigos amigos jogavam sinuca e saíram à porta para o verem passar curiosos. Certamente não o conheceram. Voltaria ali depois para cumprimentá-los, pois, certamente eram conhecidos. Todos o eram quando saiu para estudar, pelo menos a maioria deles.  

          __Padre!  

Chamou a meia distância, pois ele conversava com alguém debaixo de uma das duas grandes árvores que tinha na praça da capela. Monsenhor João Facunto se levantou, virou-se ajeitando os óculos que lhe davam uns ares engraçados. Ao reconhecer João Francisco apressou-se a alcançá-lo.  

          __Meu filho, meu filho, que saudades. Todos os dias destes oitos anos eu perguntava por você, eu rezava por você.  

          __Obrigado padre por tudo que o senhor fez por mim. Sou um engenheiro de Minas graças ao seu incentivo, graças ao seu apoio. Isso sem falar do dinheiro que me emprestou para despesas pelo caminho e a mula que me deu para me levar junto com minha mala de roupas até Ouro Preto. Aqui tem um dinheiro, tome. Acho que dá para pagar seu empréstimo e a mula, não?  

          __Não quero meu filho. Dê à sua mãe e aos seus irmãos.  

          __Não, padre, eles não precisam mais. Progrediram muito depois que ganharam a terra para plantar e estão bem. Pode pegar padre. Fica para as obras da capela. 

          __Tudo bem, João Francisco. Se você insiste tanto, vou aceitar para as obras da paróquia. 

           __Agora, padre, quero que me abençoe para eu tirar de meu coração este quase ódio que nele se instalou por Bárbara ter se casando com outro.  

          E duas lágrimas atrevidas deslizaram pelo seu rosto bem barbeado, exatamente bem barbeado para encontrar a sua amada que agora pertencia a outro homem e ele nem mais a poderia ver!  

          __Não meu filho, não meu filho. Não necessita eu abençoar você para trocar por compreensão o ódio que se instalou em seu peito. Na verdade, tudo de bom que aconteceu com você e sua família foi a menina Bárbara que colaborou para acontecer. Por favor, trate de esquecê-la, pois, está casada e o fez diante deste altar de Deus e só a morte pode liberá-la deste juramento, você sabe disso.  

          __Como assim padre?  

          __Vamos enumerar? Você foi preso e maltratado injustamente pelo sumiço da roupa dela e ela se condoeu e o mandou soltar. Você lutou bravamente com aquela onça e quase morreu. Você o fez por amor. Você sofreu e, tentando afugentar você de Bárbara, seu João Fernandes, padrinho dela, fez o que fez para a sua família que, como você mesmo diz, está progredindo na terra própria. Agora, convenhamos você não foi à busca de cultura porque eu ajudei. Você não se firmou em Ouro Preto pela carta de Bárbara ao amigo joalheiro dela. Você foi empurrado para Ouro Preto em busca de melhorar sua posição social e ter mais condições de lutar pelo seu amor. Logo, meu amigo, você subiu na vida graças a seu amor por Bárbara. Volte para Ouro Preto e busque outro amor, continue progredindo na vida.  

          __Com quem Bárbara se casou?  

         __Acho que não deveria saber. Vá embora. Esqueça esta moça. O que importa com quem ela se casou?  

          __Eu vou sim, padre, mas, diga-me o nome dele. Eu preciso saber. Se o senhor não me disser eu vou perguntar a ela e será pior.  

          __Muito bem, meu filho. Por capricho do destino ela se casou com um índio. Um índio Puri. O mesmo índio Puri que roubara a roupa de Bárbara naquela tarde no remanso das pedras redondas da cachoeira. Você por culpa dele, naquele dia, foi espancado e preso.  

          __E eles vivem bem?  

          __Vá embora, meu filho. Isto não é da sua conta...  

          __Pela sua resposta eles não vivem bem, não é?  

          __Sim, eu não deveria lhe contar isso, pois, vai fazer você sofrer e não é você que conseguirá consertar isso. Ele é uma pessoa má, alcoólatra, agressivo, não trabalha e, sem nenhuma classe, sem nenhuma cultura. Não sei por que a nossa pequena Bárbara foi se envolver com uma pessoa deste nível. Ele vive na venda de Sr. Norim se embriagando.  

         __Mas, ele não a agride certo?  

   

          __Agride sim. Muitas vezes ela foi agredida por ele.  

         __Padre do céu, por que ele tolera isso, me diga?  

         __Ela é uma verdadeira cristã, meu filho. Não se envolva nisso. Volte para Ouro Preto, vá viver a sua vida profissional que será linda. Não fique aqui, vá embora!  

          __É isso que significa ser cristã? Ou cristão? Ela tem que se submeter ao sofrimento para provar que é cristã? Não creio no que estou ouvindo, padre. Que Deus é este? Este Deus não é aquele que me ensinou no catecismo. O Deus que eu aprendi não quer que as pessoas sofram. Desculpe padre. Vou embora sim, pois jamais vou concordar com isso. Como o senhor disse, eu não vou conseguir mudar isso. Volto amanhã para Ouro preto. Abençoe-me, monsenhor. Antes de partir, volto para me despedir.  

          __­­Vá com Deus, meu filho. Dê lembranças à sua mãe. Diga aos seus irmãos que eu não os vejo na capela. Apenas vejo sua mãe. Deus os quer aqui.  

          __Eu direi padre.  

João Francisco voltou pensativo trotando o seu cavalo marchador. Doía-lhe o coração pelo sofrimento de Bárbara. Resolveu andar pelo povoado para ver as mudanças que tanto falavam que tinham acontecido. De longe ele observou uma farmácia. Caminhou até lá. Era a farmácia de Bárbara. Desceu do cavalo e o continuou puxando pela rédea e caminhando em direção à farmácia. Entrou. Ela, assim que o viu, fugiu para dentro. Chegou a ver seu braço na tipoia e um olho muito roxo. João Francisco a chamou e não foi atendido. Ela o reconheceu e não quis ser vista naquele estado.

João Francisco voltou triste para casa. No trajeto de volta ele mudou de ideia e foi até a venda do Sr. Norim. Desceu do cavalo e o amarrou em um travessão apropriado na porta. Alguns amigos o cumprimentaram. O marido de Bárbara sentado em um saco de arroz, recostado ao balcão de tijolos sem reboco levantou o mini copo de aguardente e o levou à boca num gole só. Quando viu João Francisco levantou-se e foi logo o insultando:  

          __Olha só quem está aqui. Está bem seu almofadinha, hein?  Olha aí gente, ele agora é doutô, doutô da cidade grande. Quer tomar uma pinga “seu” doutô?  Sua amada, que voismicê nunca conseguiu namorar é agora a minha muié, sabia? Minha muié! Nunca mais vai ser sua, entendeu seu almofadinha? Minha muié. Eu pago uma pinga pra voismicê pra comemorar. “Seu” Norim bota uma pinga “prele”.  

“Seu” Norim obedeceu e colocou um mini copo de pinga no balcão. João Francisco o pegou, levantou-o até a boca e voltou a colocá-lo no balcão e disse com voz firme e tendo todos a olhá-lo:  

        __Eu ainda gosto de uma pinguinha. Eu vou tomar esta pinga para comemorar seu casamento, mas, eu vou pagar.  

E, tirando o dinheiro da algibeira o colocou sobre o balcão. E completou:  

         __Não posso aceitar um brinde de um homem que bate na mulher...  

O índio puri se levanta, pega o mini copo no balcão e atira a pinga no rosto de João Francisco. A aguardente arde em seus olhos e o ódio em seu coração. Assim que ele coloca o copo no balcão de tijolos crus João Francisco o pega e o atira violentamente no rosto do índio Puri.  Conseguiu atingi-lo em plena região de supercílio direito com um ferimento que sangra muito. Pareceu querer desfalecer com o impacto do lançamento, mas, recuperou-se rapidamente. Saiu praguejando furioso e gritando para João Francisco não se meter com a família dele. Depois de secar o rosto da pinga nele atirada, João Francisco voltou para casa.  

          O jantar estava pronto. Agora ele estava com fome. O episódio na “venda” abriu o seu apetite. Que saudade da comidinha de sua mãe. Cheirava na cozinha o frango ensopado com lobrobô (ora-pro-nóbis) A fumaça do fogão à lenha misturava-se à fumaça do caldeirão de arroz e da vasilha de mandioca cozida. João Francisco pediu desculpas à sua mãe, mas, não resistiu ao ver aquelas linguiças secas na fumaça penduradas em cima do fogão e teve que matar a saudade e comer um bom pedaço assado na brasa.  

Era noite alta e João Francisco tocava a sua viola no terreiro tendo como plateia, no chão, cabras e vacas, e no céu, as mesmas estrelas disputando com a lua um espaço no escuro do céu. De repente vieram gritando que o índio puri acabara de matar a sua esposa e fugira para a serra de malacacheta. João Francisco largou a viola, pegou o seu cavalo e correu até a casa grande. Deu de ombros empurrando curiosos ali aglomerados e, estirada no chão da varanda, deparou com a sua sempre pretendida Bárbara, morta. O peito com várias perfurações de faca e o sangue, que tanto desejou amar, tingindo o chão de tábuas de braúna por onde escorria. Ajoelhou-se sobre aquele sangue e, em um choro incontrolável, abraçou pela primeira vez aquele corpo que tanto desejou, querendo, talvez, trocar de lugar com ela. Seu sangue, ainda escorrendo, molhava o peito dele que não cabia de dor e ódio. Levantou-se com os punhos serrados e gritou com toda a força que o ódio lhe permitia:  

         __Índio puri, desgraçado. Você destruiu minha vida, seu maldito dos demônios. Eu vou buscar você seu canalha. Vou até o inferno. Eu vou trazer você arrastado pelo rabo do meu cavalo de onde você estiver até aqui e farei você lamber este sangue sagrado de minha amada Bárbara.  

E num salto rápido pulou na cela de seu cavalo e correu noite adentro subindo e descendo morros e logo o alcançou correndo a pé pelas encostas brilhantes de malacacheta. Quando viu que era realmente ele, João Francisco gritou enfurecido:  

          __Seu índio desgraçado, volte aqui seu covarde, venha bater em alguém de seu tamanho.  

          __Quer morrer também seu almofadinha da cidade grande? Então morra.  

         Estranhamente, João Francisco ouviu dois tiros e viu seu cavalo correndo de volta e, viu também o seu corpo rolando pela encosta. Ele correu até o seu corpo e o seu corpo estava morto. Não viu mais o índio. Não viu mais as minas de malacacheta. Não viu mais a noite.Não se viu mais...  

A vida terrena de João Francisco acabara ali. Naquela mesma madrugada, ainda fugindo a pé, o índio sentou-se em um cupim para descansar, foi picado por uma cobra jararaca e morreu.  

Parece que o espírito de João Francisco estava apenas esperando a morte de seu assassino. Assim que o índio foi morto pela cascavel, ele voltou a se ver, mas, não na terra. Ele se viu em uma gigantesca escadaria de prata que parecia flutuar e ser carregada por também gigantescas nuvens brancas. Ali, onde flutuava, ele não conseguia sentir ódio. Dali ele podia ver, como em um filme, cenas do mundo inteiro que não conhecia. Conseguia ver a dor de sua família, na terra, sendo consolada por anjos do céu. Mas, outros anjos, pequeninos, o despertaram para a nova vida que, agora, seria eterna. Outros anjinhos trouxeram até ele o espírito de Bárbara. Estava linda, chegou com o seu sorriso largo. Deram-se as mãos, beijaram-se intensamente e continuaram subindo, juntos, as escadarias do céu.  

 

  

  

  

  

  

  

  

  

  

  

  

  

  

  

  

  

  

  QUANDO EU A VIA, O AMOR EXPLODIA EM MIM

  

  

  

 

  

                    Conto de Dr. Afrânio Luiz Bastos  



 

  

  

  

  

  

  

  

  

  

  

  

Dedicatória  

  

À minha esposa, Fátima, presente de Deus para mim e para meus filhos  

À minha irmã Therezinha Bastos sem a qual eu não seria médico  

Aos meus netos Ana Júlia, Bernardo, Benjamim, Thomas, Micaela e a outros que desejo que apareçam  

  

  

  

  

  

   

   

   

Século XIX.

Em um dia qualquer de um destes anos abençoados de Nosso Senhor Jesus Cristo.   

O sol já cansara de trabalhar naquele dia e em algumas horas depois seria substituído pela lua que, naquela noite, seria cheia e, certamente bela.   

Após a lida do dia, sentado em uma pedra do quintal, João Francisco receberia a lua bela com os cânticos mágicos de sua viola de pinho que o seu pai, já falecido, fabricara e lhe dera de presente no Natal.   

Ele terminara o trabalho na roça. Doía-lhe as mãos calejadas pela enxada na capina e plantio de milho.  Chegou em casa. Tirou do dedão do pé, com uma agulha de costura de sua mãe, depois de queimar sua ponta no fogo do fogão a lenha, um bicho de pé que pegara no chiqueiro de porcos do seu João Fernandes.   

Pediu à sua mãe para ir pescar no córrego das pedras redondas em uma cachoeira do lugar. Mesmo sabendo da importância da pescaria para levar o complemento de alimentos para a mesa dela, viúva jovem, e seus cinco filhos ela ordenou que primeiro fosse à moenda do sinhô João Fernandes, dono da fazenda onde moravam, levar milho para trocar por milho em pó que seria usado no cuscuz.  

Obviamente que ele obedeceu. Pegou um pesado saco de milho que ele mesmo descascara e debulhara e foi em direção à fazenda. Enveredou-se pelo caminho espinhento e repleto de perigos onde poderiam se esconder, entre outros, cobras peçonhentas.    

Na moenda do Sr. João Fernandes um fila grande se formava, cada um esperando por sua vez. Era forte o cheiro de suor, poeira e mato que se misturavam naqueles corpos. Doía-lhe as costas sob o peso do saco de milho, mas ele esperava pacientemente, pois necessitava do trabalho da moenda.  Era feita uma troca. Sempre deixavam um terço do milho para pagar o parco milho em pó que levavam para casa. Uma troca desonesta que revoltava a todos que dependiam daquela moenda exploradora. Eles não tinham saída, pois, não era deles a terra em que plantavam e, muito menos, tinham outra forma de tornar em pó o milho que os alimentava.   

De longe João Francisco observava a menina Bárbara que na porta da moenda providenciava o acerto da troca enquanto sofridos escravos faziam a moedura dos grãos. A menina Bárbara estava de férias e era afilhada do dono da fazenda e, da moenda. Ela estudava farmácia em Ouro Preto e iria se formar naquele ano. Era linda, muito linda. Bárbara e João Francisco cresceram juntos naquelas colinas.   

Ainda menina o padrinho dela inventou esta ideia de estudar e ela foi levada, sobre lombo de burros, pela estrada poeirenta para a cidade de Ouro Preto. Raramente ela voltava ali.   

Esta semana seria uma época especial, pois seu padrinho, João Fernandes, estava doando uma terra ao distrito, ao lado do Rio Matipó, na sua reta maior, para se iniciar um povoado. Seria feita uma comemoração e Bárbara viera para a festa.  

João Francisco nunca mais a tinha visto, embora desejasse isso todos os dias e noites de sua vida.  Cresceram juntos, brincaram juntos, estudaram juntos na pobre escolinha da colina.  

João Francisco se apaixonou por ela.  

Sua imagem linda, embora longe e sem se lembrar de um pobre coitado como ele, não saía de sua mente. Ela nem imaginava o que se passava nos pensamentos e nos sentimentos dele.   

João Francisco a recordava caminhando perigosamente em alta velocidade em pelo de cavalo, sem arreio, sem sela. Ela, lembrava ele, parecia uma deusa ou uma fada cavalgando nos pastos de capim gordura desfilando e desafiando as altas colinas. Das altas colinas uma brisa fria descia e balançava seus cabelos de rebeldes cachos amarelos.  Brilhantes   cabelos cor do sol lindamente a deslizar em seu rosto angelical.   

Ela viu João Francisco na fila e foi até ele cumprimentá-lo.  Ele sentiu vergonha de si mesmo. O perfume dela nunca se afastou dele. Ele se lembrou de quando eram crianças e ela o ensinava a escrever. As suaves mãos dela conduzindo as suas, grosseiras e desajeitas, a ensinar-lhe a escrever o bê-á-bá e o a-b-c. Seu simpático sorriso largo, sempre lindo, continuava a lhe enfeitar o rosto.   

Como é difícil tentar esquecer esta paixão de sua vida. Como é difícil pensar em esquecer aqueles dias lindos. João Francisco não deixa de pensar nela e, a cada dia parece que seu amor aumenta mais, como também aumenta a distância entre eles. Ele continua sem cultura e ela cada vez mais estudada. Ele não devia tê-la amado. Acha até que foi atrevido e irresponsável quando o fez, mas, é tarde demais agora para controlar o seu coração. Ela se aproveitou de sua simplicidade, enfiou suas lindas mãos em seu peito amolecido e de lá arrancou seu coração, cravou-lhe uma flecha e o entregou a um anjo pequenino que o escondeu ao longe das colinas azuis.   

Um amor doentio tomou conta de seu ser e, aquele amor proibido estava ali, era ela. Ela foi até ele. Ele estava sujo e cheirava mal pelo suor do trabalho desde madrugada alta. Ela, elegantemente vestida com roupas de cidade, suavemente perfumada, olhos cheios de vida e o mesmo lindo sorriso largo. Ele não sabia se ficava feliz se contentando só com aquilo ou frustrado e triste por não merecer mais.  Ela tocou as suas mãos calejadas e sujas, fazendo o seu coração explodir de amor. Ela lhe perguntou como estava ele. Ele respondeu com respeito e educação. O seu já falecido pai lhe ensinara a conversar bem.

Quando eram crianças, lá na escolinha da serra, antes de Bárbara ir para a cidade grande, enquanto brincavam, ela o corrigia e o ensinava a falar. Também lia os livros do monsenhor João Facunto Chaves que, antes da construção da primeira capela, vinha algumas vezes rezar missa na casa grande da fazenda. Nos horários das missas, no terreiro descalço, eles se amontoavam sentados no chão puro juntos com índios Puris e velhos escravos doentes para ouvir a palavra de Deus.   

        Voltando à realidade conversaram um pouco e ela voltou para a sua atividade na moenda.    

        Chegou a vez do milho de João Francisco ser moído, e foi...  

         Após pegar o pó de milho que a autoridade lhe delegava em troca pelo trabalho da barulhenta moenda movida por água corrente, ele saiu, deixou em casa junto com um maço de couve que  pegara na casa de seu Monteiro em troca de um punhado do pó de milho que  levava. Seu Monteiro mandou que Maria Francisca lhe desse uma cuia d'água para lhe abrandar a sede. Ela, enquanto derramava a água fresca na cuia de coité, olhava João Francisco emocionada e desejosa. Ela gostava dele e, gosto fazia toda a sua família para o casamento. Ele não conseguia dar a ela nenhuma esperança, pois, o seu amor impossível era todo de Bárbara. Ela dizia que se João Francisco não a quisesse de verdade ela iria para o convento ser freira.  

         João Francisco pegou a sua vara de pescar, arrancou com o enxadão algumas espertas minhocas no quintal e caminhou rápido por entre o mato e o capim alto para pescar lambari  no rio que se formava no desaguar de uma cachoeira das proximidades. Sabiás selvagens cantavam alegremente em seus ninhos no pé de angá. Canários- da-terra embelezavam a tarde com seu lindo cântico enquanto suas fêmeas colhiam pequenas minhocas nos barrancos do riacho barulhento. Dois filhotes de coelhos brincavam no capim alto indiferentes ao cansaço do dia que findava e à noite que se anunciava linda. Ainda era crepúsculo. O anoitecer chegava e, lentamente, empurrava o sol para detrás dos montes azuis.

         Quando ele estava chegando, ouviu risos no remanso da cachoeira. Caminhou rápido afastando frágeis ramas de bambu e viu dois jovens índios puris agachados e olhando excitadamente ansiosos. Voltou-se para o lago do remanso e viu duas moças nuas nadando indiferentes a tudo e a todos. Uma delas era Bárbara e, a outra, uma escrava da família que lhe servia de dama de companhia, tão moça quanto Bárbara. Ele já as vira outras vezes ali se banhando. Sentiu um ciúme infernal e partiu para cima dos índios para impedi-los de continuar olhando e travaram uma briga tamanha. Enquanto ele lutava com um deles, o outro correu e, roubando as roupas das duas moças e, fugindo silenciosamente, ele sumiu capoeira adentro. João Francisco e o outro índio puri se machucaram muito e saíram se xingando. O índio que com ele lutava, também correu mato adentro esquecendo e deixando para trás uma fieira grande de lambari que havia pescado. Enquanto isso, um menino escravo já buscara novas roupas para elas na casa grande da fazenda.  

João Francisco voltou para casa onde a sua mãe o esperava com o complemento do jantar. Ele limpou bem limpo lambari por lambari e os fritou bem fritinhos na quente banha de porco. Um gostoso mingau de couve, cuscuz de milho e lambari frito foi o jantar.  Seus irmãos eram amigos, felizes e brincalhões. Conversavam bastante e davam muitas risadas.  Comiam com vontade e, com gostosa fartura, aquela comida pobre.  

 João Francisco acendeu as lamparinas de azeite. Sentou-se com a sua viola de pinho numa pedra junto ao terreiro. Músicas lindas e apaixonadas saltavam das cordas de sua viola. As doces melodias se espalhavam molhadas pelo sereno da noite do lugar e voavam com o vento seguindo rumo à imensidão. Parecia até que as estrelas "lumiavam" mais o chão e se afastavam para deixar a lua cheia o olhar mais de perto.   

De repente, João Francisco foi abordado por um policial o intimando a ir ao posto policial para depor. Um índio puri o denunciara como se ele tivesse roubado as roupas de Bárbara e de sua escrava no remanso da cachoeira. João Francisco negou tudo e não aceitou assinar o depoimento. Apanhou muito do policial, ficou todo marcado de borrachadas do cassetete do policial, mas, não assinou. Ficou preso naquela noite, todo doído e sangrando, mas não assinou por uma coisa que não havia feito.   

Pela manhã o policial, o mesmo, só havia ele no povoado de São João do Rio Matipó, abriu a porta da cadeia e o soltou praguejando ameaças por ele ter se negado a assinar o depoimento. João Francisco já estava  na rua poeirenta quando, da porta da cadeia, o policial gritou com voz firme e alta:  

__Agradeça à madame Bárbara, pois, foi ela que lhe mandou soltar.   

Curiosos o rodeavam e comentavam seus machucados e a sua humilhação. Chorando, a sua santa mãe veio recebê-lo e o escorou na volta para casa. Ao passar pela porteira que dá acesso ao terreiro ele desmaiou. Desesperados ela e dois de seus irmãos o carregaram até o barraco e o deitaram em uma rede limpa. Trocaram cuidadosamente a sua roupa ensanguentada e cobriu as lesões com uma pasta de confrei.   

A notícia se espalhou pelo povoado. Seus amigos vieram visitá-lo. Todos o conheciam bem e, mais, sabiam do seu amor pela filha da Casa Grande. Apostavam que não fora ele. Um deles chegou a questionar por que ele não reagiu e não lutou com o policial. Teria sido pior e ele teria que fugir, pois, outros policiais, certamente, seriam enviados da "freguesia" de Abre Campo a ajudá-lo a manter a ordem e o respeito à autoridade.   

João Francisco já se sentia bem por não ter assinado o depoimento no mal escrito livro de registros e ocorrências.   

Neste instante chegou uma escrava de Bárbara com uma "encomenda" para ele. Disse a escrava:  

__A senhorita Bárbara ficou sabendo do ocorrido e mandou este chá que ela mesma fez para voismicê. É uma decocção de confrei com água e vinho e serve para sarar a dor e a inflamação. 

 João Francisco agradeceu e a escrava saiu apressada. Mesmo antes de tomar aquele chá ele já se sentiu melhor. Fora feito e mandado pela sua amada. Ela fora a causa da sua prisão e das suas lesões. Parecia que se importava com João Francisco, o que lhe fazia muito bem saber.  

          Continuava a vida como Deus a determinou. Já dois anos haviam se passado. Alguns alqueires de terra foram doados pelo padrinho de Bárbara ao longo do trajeto mais reto do rio Matipó. Ali se construiu uma capela, que levou todo este tempo para ficar pronta, em homenagem a São João.

 

          Na construção da capela João Francisco trabalhou duro, como voluntário, ao lado de alguns amigos, sem nada receber. Trabalhavam às noites, sábados e domingos, até deixarem pronta a capela de São João Batista. Monsenhor João Facunto Chaves passou a rezar diariamente na capela e não só ocasionalmente como fazia antes na Casa Grande da fazenda.  

         Era junho, época de festas juninas, dia de São João, e uma grande festa foi preparada para aquele sábado. Bárbara já estava formada e trabalhava no lugarejo. Vários amigos dela vieram da cidade grande em lindos cavalos marchadores e estavam hospedados na Casa Grande da fazenda. João Francisco morria de ciúmes dos amigos dela e chegava a se deprimir e a se odiar por não ter qualidades para disputar o seu amor.  

         Fora uma grande festa. Bandeirolas coloridas de papéis cortados, amarradas em barbantes entrelaçados, completavam um cenário festivo. Ao fundo o mastro, com a imagem de São João Batista, personalizava a comemoração. De muito longe, da Diocese de Mariana, vieram a banda de música e os congados, sendo todos os instrumentos transportados por tropa de burro e os músicos e dançarinos em lindos cavalos de raça. Ficaram todos hospedados na fazenda de seu João Fernandes. Doía-lhe novamente o ciúme de sua desejada Bárbara pelos rapazes que se hospedavam na casa de seu padrinho onde ela costumava frequentar.  

         Grandes valetas foram cavadas no solo onde troncos se queimavam em brasa assando centenas de grandes pedaços de boi transfixados por espetos de bambu. Todos do povoado comiam sem economia aquela oferenda do padrinho de Bárbara. Sanfoneiros se postavam noite adentro no ritmo de músicas de época. Violeiros apaixonados faziam as cordas de seus instrumentos levarem as suas mensagens de amor   às caipiras virgens do lugar.  Até mesmo João Francisco mandou a sua mensagem, não só tocando, mas, também cantando. As cantatas dele eram juras de amor para a sua doce Bárbara que nem ali estava. Talvez bastante ocupada com os seus convidados na casa grande da fazenda.    

          No dia seguinte foi o tempo de se recuperar da ressaca da festa. Ninguém faltou à missa das dez naquele lindo domingo de sol. João Francisco e seus cinco irmãos, juntamente com a sua mãe, voltavam famintos para casa depois da demorada homilia (como dizia o padre).            

          Quando estavam atravessando a porteira, quase foram atropelados por vários cavaleiros. Talvez uns sete ou oito, não se sabe ao certo, que passaram em disparada gritando desesperados que estavam sendo perseguidos por uma onça. Assim como chegaram sumiram na curva do morro. Logo em seguida uma linda voz conhecida passou a galope, em seu cavalo de raça, gritando loucamente por socorro. Logo atrás, a perseguí-la, uma onça pintada gigantesca, rugia seu ruído mais ensurdecedor. O cavalo de Bárbara tropeçou atirando-a no poeirento chão de terra batida deixando-a à sua sorte, frente ao gigantesco e faminto felino. Era ela, a Bárbara bela tão amada e desejada, tentando se levantar. A onça, ameaçadora, caminhava lentamente em sua direção estremecendo o terreiro com seu rugido mais forte. Necessitando matar a sua fome, o gigantesco felino já tinha certo a sua desprotegida e fácil refeição. Angustiado, João Francisco não sabia o que fazer. Ele não podia perder a sua amada mesmo ela o desconhecendo e, já que era desconhecido, por que continuar vivo. Ele só tinha um facão na cintura. Quando deu por si já estava pulando em cima da onça e, quase irresponsavelmente, agarrando-a pelo pescoço e deferindo-lhe repetidas facadas com toda a força de seus musculosos braços. Atirado ele foi ao chão e pareceu sentir o peso daquele feroz animal sangrento a lhe morder os braços e o tórax. João Francisco gritava de dor com as mordidas da pintada, mas, não deixava de desferir nela repetidas e certeiras facadas. Já quase desfalecido, ouviu-se um tiro e o gigantesco animal caiu morto em cima dele.   

          Quando deu por si, ele estava em uma cama de verdade (nunca havia deitado numa), na casa grande. Alguém lhe dera banho e a sua amada farmacêutica cuidava de suas feridas. Com linhas comuns bem fervidas, ela "costurou" as suas lesões maiores. O mesmo amassado de folhas de confrei era usado nas feridas. Repetidas doses de chá quente de confrei com água e vinho lhe eram dadas. Compressas de água tentaram lhe aliviar a febre. Por muitos dias permanecera desfalecido e, conforme lhe contaram depois, delirando com a febre que teimava em não ceder. A farmacêutica Bárbara não se desligava dele. João Francisco sentiu medo que, em seus delírios, lhe tenha mencionado o nome. Quando teve condições de ir embora vários dias depois, quero dizer muitas semanas depois, João Francisco agradeceu envergonhado por não ter como pagar. João Fernandes lhe respondeu:  

         __ Meu amigo, meu amigo. Se aqui alguém tem que pagar alguma coisa somos nós. Você se arriscou para salvar da morte certa a minha menina Bárbara. Os amigos dela lá da cidade correram todos e a abandonaram à própria sorte. Se não fosse o Chico caçador você teria morrido. Fiquei tão emocionado com sua atitude que dei um pedaço de minha terra para sua mãe plantar uma horta e criar alguns porcos e cabras. Mandei fazer também uma casa decente para vocês com quartos grandes e camas para todo mundo. Tudo isso é muito pouco pelo que você fez por nossa família. Vá com Deus.  

         E continuou ainda seu João Fernandes:  

          __ Que mais eu posso fazer por você em agradecimento?  

João Francisco olhou fixamente nos olhos de Bárbara a quem só por prêmio poderia pretender o seu coração, se quisesse um. Não bastava só ele a querer. Também não seria bom se ela o quisesse por dó, por compaixão ou por agradecimento.  

         Um carro de duas juntas de bois o levou para casa, agora um pouco mais longe. A sua mãe estava com ele. Não saíra de seu lado durante todas aquelas semanas. Alguma parte de seu corpo ainda doía quando entrou em sua casa nova, que era bem bonita e confortável. A sua mãe merecia e, também os seus irmãos. Eles já, enquanto João Francisco estava moribundo, plantaram verduras e legumes na horta. Já ordenhavam as cabras e o milho engordava três porcos no chiqueiro. Galinhas corriam pelo quintal que não era pequeno. Teriam uma vida mais segura e tranquila, se  soubessem manipular o que lhes foi dado. Certamente saberiam, pois queriam melhorar de vida. Ele, sua mãe e seus irmãos estavam constrangidos de aceitar “aquele” pagamento em troca da vida da afilhada do fazendeiro.  

          Depois de mais recuperado eles foram lá conversar com João Fernandes, padrinho de Barbara e dono da fazenda, sobre o constrangimento que a doação lhes causou.  Saíram de lá convencidos de que aquilo não era nada frente à fortuna do seu João Fernandes, sem falar no sacrifício de quase morte de João Francisco. Voltaram para casa menos desconfortados.  

         No dia seguinte era domingo. Um frio domingo de fim de inverno. Chovia. Chovia muito. Enxurrada e barro lamacento dificultavam a todos de caminhar pelas ruas descalças. Mesmo assim não faltaram na missa da capela. Monsenhor João Facunto Chaves fez uma linda homilia. Ao final da missa ele pediu aos fiéis que rezassem em agradecimento a Deus pelo restabelecimento de João Francisco. Ele ficou emocionado pela vibrante oração daqueles amigos humildes.   

          João Francisco deixou que todos saíssem. Permaneceu ajoelhado. Ainda sentindo alguma dor, rezou ao seu santo protetor em agradecimento não só pela sua vida, mas, pela gratidão do padrinho de sua amada de facilitar a vida de sua mãe e de seus irmãos.   

          Monsenhor João Facunto, quando saía, foi até onde ele estava, sentou-se ao seu lado com o cuidado para não interromper a sua oração. João Francisco falou primeiro:  

         __ Obrigado monsenhor pela linda oração por minha recuperação. Fiquei emocionado com a resposta de nosso povo acompanhando a sua reza.  

        __ Meu filho, meu filho... Somos todos irmãos. Além disso, você é um filho de Deus e, saiba, um filho de Deus muito especial, muito amado, muito querido por nosso povo.  

        __ Padre, o Senhor me conhece desde menino. Muito raramente o Senhor vinha rezar missa aqui, ainda no terreiro da casa grande da fazenda, e eu sempre estava lá aprendendo a “falar certo” como o senhor dizia. Como o senhor me conhece sabe que eu não estou confortável com o pagamento que seu João Fernandes deu à minha família pelo que aconteceu.  

        __Não, não! Claro que não! Ele nada lhe pagou, pelo contrário. Pelo contrário meu filho, ele enganou você e tentou abafar seus nobres sentimentos. Eu estava a todo o momento ao seu lado, durante todo o período mais grave de seu restabelecimento. A febre parecia querer consumir você. Você delirava e falava alto e, em todo momento, você declarava a sua paixão por Bárbara. Delirando você descrevia cada facada que dava na grande onça pintada e sempre gritando que amava Bárbara e que não a deixaria ser ferida ou maltratada. Sua amada Bárbara não saía de seu lado e ela chorava muito quando ouvia o nome dela de sua boca. Seu João Fernandes, com o prêmio que deu, só quis compensar e afastar de você outras futuras pretensões. Se você realmente gosta de Bárbara, se você quer de verdade a sua amada, meu filho, só tem um caminho. Vá para a cidade grande estudar.  

         __Como, monsenhor? Como?  

         __Só depende de você querer. Tenho amigos em Ouro Preto que podem lhe dar um ofício e, ao mesmo tempo, lhe abrir horário para estudar. Agora você pode provar que ama Bárbara de verdade. Estudado você estará no mesmo nível dela. Seus irmãos já têm facilidade para se virarem sozinhos. E, você se formando, poderá ajudá-los mais tarde, certo?  

         __Vou conversar com meus irmãos e com a minha mãe e volto a falar com o senhor.  

         João Francisco voltou para casa e, no trajeto de volta, a sua mente trabalhava a proposta do padre. Pela tarde, Bárbara passou na casa dele para revisar os seus ferimentos. Estavam ótimos. Ela aproveitou para opinar sobre a sua ida para a cidade grande para estudar. Ela até lhe deu o nome de um ourives e joalheiro amigo dela dizendo que ele não deixaria de ajudá-lo. Já ali mesmo escreveu uma carta de apresentação. Ela lhe desejou boa sorte e foi embora.  

 Sabendo que poderia ser mesmo mais uma maneira de se aproximar de Bárbara, tendo cultura igual à dela, podendo conversar no nível que o dela, João Francisco decidiu ir. Também, depois de formado, poderia ajudar os seus irmãos e descansar a sua mãe da lida diária.  

Enfrentou uma aventura até então desconhecida. Uma longa viagem em um burro de carga que a igreja lhe emprestara. Enfrentou poeira e chuva pelo caminho. O monsenhor lhe dera algum dinheiro para ele pernoitar em alguma pousada nas noites daquela longa jornada, mas, ele preferiu guardá-lo para usar em seus estudos.   

Ele foi muito bem recebido pelos amigos de Bárbara. Parece que ela era mesmo muito querida deles. Passaram a tratá-lo como herói quando souberam do seu feito para salvá-la.  

          João Francisco estudou e trabalhou muito. Terminou o segundo grau e ingressou na Escola de Minas e se formou em engenharia.  

          Voltou para casa depois de oito anos. Encontrou todos bem em sua casa. Todos estavam muito felizes e orgulhosos com a sua formatura. João Francisco ficou alegre porque todos progrediam no trabalho na roça e cresciam junto com o crescimento do povoado de São João de Matipó.

            Ele teve medo de perguntar pela sua adorada Bárbara. Não esperaram pela sua pergunta. A sua mãe disse que ela se casara. O nosso novo Engenheiro se calou. Ele não deveria sentir isso, mas, chegou a ter muita tristeza, uma enorme frustração, na verdade, ódio. Perdeu a fome e agradeceu quando a sua mãe o chamou para almoçar. Entrou para o banheiro para que ninguém o visse chorar. Banhou-se para tirar o pó do caminho.  

          Tentou esquecer e descansar um pouco e não conseguiu. Montou seu cavalo de raça trotador, sim, agora ele tinha um. Foi até a capela agradecer ao Monsenhor por ter feito dele um engenheiro.   

Enquanto o seu cavalo o conduzia pelas ruas da vila, ele programava voltar para Ouro Preto. Não tinha mais o que fazer ali.   

Observava, passando pelas ruas, melhorias no comércio local. Pode ver uma loja de roupas, uma venda de secos e molhados. Em um bar, alguns antigos amigos jogavam sinuca e saíram à porta para o verem passar curiosos. Certamente não o conheceram. Voltaria ali depois para cumprimentá-los, pois, certamente eram conhecidos. Todos o eram quando saiu para estudar, pelo menos a maioria deles.  

          __Padre!  

Chamou a meia distância, pois ele conversava com alguém debaixo de uma das duas grandes árvores que tinha na praça da capela. Monsenhor João Facunto se levantou, virou-se ajeitando os óculos que lhe davam uns ares engraçados. Ao reconhecer João Francisco apressou-se a alcançá-lo.  

          __Meu filho, meu filho, que saudades. Todos os dias destes oitos anos eu perguntava por você, eu rezava por você.  

          __Obrigado padre por tudo que o senhor fez por mim. Sou um engenheiro de Minas graças ao seu incentivo, graças ao seu apoio. Isso sem falar do dinheiro que me emprestou para despesas pelo caminho e a mula que me deu para me levar junto com minha mala de roupas até Ouro Preto. Aqui tem um dinheiro, tome. Acho que dá para pagar seu empréstimo e a mula, não?  

          __Não quero meu filho. Dê à sua mãe e aos seus irmãos.  

          __Não, padre, eles não precisam mais. Progrediram muito depois que ganharam a terra para plantar e estão bem. Pode pegar padre. Fica para as obras da capela. 

          __Tudo bem, João Francisco. Se você insiste tanto, vou aceitar para as obras da paróquia. 

           __Agora, padre, quero que me abençoe para eu tirar de meu coração este quase ódio que nele se instalou por Bárbara ter se casando com outro.  

          E duas lágrimas atrevidas deslizaram pelo seu rosto bem barbeado, exatamente bem barbeado para encontrar a sua amada que agora pertencia a outro homem e ele nem mais a poderia ver!  

          __Não meu filho, não meu filho. Não necessita eu abençoar você para trocar por compreensão o ódio que se instalou em seu peito. Na verdade, tudo de bom que aconteceu com você e sua família foi a menina Bárbara que colaborou para acontecer. Por favor, trate de esquecê-la, pois, está casada e o fez diante deste altar de Deus e só a morte pode liberá-la deste juramento, você sabe disso.  

          __Como assim padre?  

          __Vamos enumerar? Você foi preso e maltratado injustamente pelo sumiço da roupa dela e ela se condoeu e o mandou soltar. Você lutou bravamente com aquela onça e quase morreu. Você o fez por amor. Você sofreu e, tentando afugentar você de Bárbara, seu João Fernandes, padrinho dela, fez o que fez para a sua família que, como você mesmo diz, está progredindo na terra própria. Agora, convenhamos você não foi à busca de cultura porque eu ajudei. Você não se firmou em Ouro Preto pela carta de Bárbara ao amigo joalheiro dela. Você foi empurrado para Ouro Preto em busca de melhorar sua posição social e ter mais condições de lutar pelo seu amor. Logo, meu amigo, você subiu na vida graças a seu amor por Bárbara. Volte para Ouro Preto e busque outro amor, continue progredindo na vida.  

          __Com quem Bárbara se casou?  

         __Acho que não deveria saber. Vá embora. Esqueça esta moça. O que importa com quem ela se casou?  

          __Eu vou sim, padre, mas, diga-me o nome dele. Eu preciso saber. Se o senhor não me disser eu vou perguntar a ela e será pior.  

          __Muito bem, meu filho. Por capricho do destino ela se casou com um índio. Um índio Puri. O mesmo índio Puri que roubara a roupa de Bárbara naquela tarde no remanso das pedras redondas da cachoeira. Você por culpa dele, naquele dia, foi espancado e preso.  

          __E eles vivem bem?  

          __Vá embora, meu filho. Isto não é da sua conta...  

          __Pela sua resposta eles não vivem bem, não é?  

          __Sim, eu não deveria lhe contar isso, pois, vai fazer você sofrer e não é você que conseguirá consertar isso. Ele é uma pessoa má, alcoólatra, agressivo, não trabalha e, sem nenhuma classe, sem nenhuma cultura. Não sei por que a nossa pequena Bárbara foi se envolver com uma pessoa deste nível. Ele vive na venda de Sr. Norim se embriagando.  

         __Mas, ele não a agride certo?  

   

          __Agride sim. Muitas vezes ela foi agredida por ele.  

         __Padre do céu, por que ele tolera isso, me diga?  

         __Ela é uma verdadeira cristã, meu filho. Não se envolva nisso. Volte para Ouro Preto, vá viver a sua vida profissional que será linda. Não fique aqui, vá embora!  

          __É isso que significa ser cristã? Ou cristão? Ela tem que se submeter ao sofrimento para provar que é cristã? Não creio no que estou ouvindo, padre. Que Deus é este? Este Deus não é aquele que me ensinou no catecismo. O Deus que eu aprendi não quer que as pessoas sofram. Desculpe padre. Vou embora sim, pois jamais vou concordar com isso. Como o senhor disse, eu não vou conseguir mudar isso. Volto amanhã para Ouro preto. Abençoe-me, monsenhor. Antes de partir, volto para me despedir.  

          __­­Vá com Deus, meu filho. Dê lembranças à sua mãe. Diga aos seus irmãos que eu não os vejo na capela. Apenas vejo sua mãe. Deus os quer aqui.  

          __Eu direi padre.  

João Francisco voltou pensativo trotando o seu cavalo marchador. Doía-lhe o coração pelo sofrimento de Bárbara. Resolveu andar pelo povoado para ver as mudanças que tanto falavam que tinham acontecido. De longe ele observou uma farmácia. Caminhou até lá. Era a farmácia de Bárbara. Desceu do cavalo e o continuou puxando pela rédea e caminhando em direção à farmácia. Entrou. Ela, assim que o viu, fugiu para dentro. Chegou a ver seu braço na tipoia e um olho muito roxo. João Francisco a chamou e não foi atendido. Ela o reconheceu e não quis ser vista naquele estado.

João Francisco voltou triste para casa. No trajeto de volta ele mudou de ideia e foi até a venda do Sr. Norim. Desceu do cavalo e o amarrou em um travessão apropriado na porta. Alguns amigos o cumprimentaram. O marido de Bárbara sentado em um saco de arroz, recostado ao balcão de tijolos sem reboco levantou o mini copo de aguardente e o levou à boca num gole só. Quando viu João Francisco levantou-se e foi logo o insultando:  

          __Olha só quem está aqui. Está bem seu almofadinha, hein?  Olha aí gente, ele agora é doutô, doutô da cidade grande. Quer tomar uma pinga “seu” doutô?  Sua amada, que voismicê nunca conseguiu namorar é agora a minha muié, sabia? Minha muié! Nunca mais vai ser sua, entendeu seu almofadinha? Minha muié. Eu pago uma pinga pra voismicê pra comemorar. “Seu” Norim bota uma pinga “prele”.  

“Seu” Norim obedeceu e colocou um mini copo de pinga no balcão. João Francisco o pegou, levantou-o até a boca e voltou a colocá-lo no balcão e disse com voz firme e tendo todos a olhá-lo:  

        __Eu ainda gosto de uma pinguinha. Eu vou tomar esta pinga para comemorar seu casamento, mas, eu vou pagar.  

E, tirando o dinheiro da algibeira o colocou sobre o balcão. E completou:  

         __Não posso aceitar um brinde de um homem que bate na mulher...  

O índio puri se levanta, pega o mini copo no balcão e atira a pinga no rosto de João Francisco. A aguardente arde em seus olhos e o ódio em seu coração. Assim que ele coloca o copo no balcão de tijolos crus João Francisco o pega e o atira violentamente no rosto do índio Puri.  Conseguiu atingi-lo em plena região de supercílio direito com um ferimento que sangra muito. Pareceu querer desfalecer com o impacto do lançamento, mas, recuperou-se rapidamente. Saiu praguejando furioso e gritando para João Francisco não se meter com a família dele. Depois de secar o rosto da pinga nele atirada, João Francisco voltou para casa.  

          O jantar estava pronto. Agora ele estava com fome. O episódio na “venda” abriu o seu apetite. Que saudade da comidinha de sua mãe. Cheirava na cozinha o frango ensopado com lobrobô (ora-pro-nóbis) A fumaça do fogão à lenha misturava-se à fumaça do caldeirão de arroz e da vasilha de mandioca cozida. João Francisco pediu desculpas à sua mãe, mas, não resistiu ao ver aquelas linguiças secas na fumaça penduradas em cima do fogão e teve que matar a saudade e comer um bom pedaço assado na brasa.  

Era noite alta e João Francisco tocava a sua viola no terreiro tendo como plateia, no chão, cabras e vacas, e no céu, as mesmas estrelas disputando com a lua um espaço no escuro do céu. De repente vieram gritando que o índio puri acabara de matar a sua esposa e fugira para a serra de malacacheta. João Francisco largou a viola, pegou o seu cavalo e correu até a casa grande. Deu de ombros empurrando curiosos ali aglomerados e, estirada no chão da varanda, deparou com a sua sempre pretendida Bárbara, morta. O peito com várias perfurações de faca e o sangue, que tanto desejou amar, tingindo o chão de tábuas de braúna por onde escorria. Ajoelhou-se sobre aquele sangue e, em um choro incontrolável, abraçou pela primeira vez aquele corpo que tanto desejou, querendo, talvez, trocar de lugar com ela. Seu sangue, ainda escorrendo, molhava o peito dele que não cabia de dor e ódio. Levantou-se com os punhos serrados e gritou com toda a força que o ódio lhe permitia:  

         __Índio puri, desgraçado. Você destruiu minha vida, seu maldito dos demônios. Eu vou buscar você seu canalha. Vou até o inferno. Eu vou trazer você arrastado pelo rabo do meu cavalo de onde você estiver até aqui e farei você lamber este sangue sagrado de minha amada Bárbara.  

E num salto rápido pulou na cela de seu cavalo e correu noite adentro subindo e descendo morros e logo o alcançou correndo a pé pelas encostas brilhantes de malacacheta. Quando viu que era realmente ele, João Francisco gritou enfurecido:  

          __Seu índio desgraçado, volte aqui seu covarde, venha bater em alguém de seu tamanho.  

          __Quer morrer também seu almofadinha da cidade grande? Então morra.  

         Estranhamente, João Francisco ouviu dois tiros e viu seu cavalo correndo de volta e, viu também o seu corpo rolando pela encosta. Ele correu até o seu corpo e o seu corpo estava morto. Não viu mais o índio. Não viu mais as minas de malacacheta. Não viu mais a noite.Não se viu mais...  

A vida terrena de João Francisco acabara ali. Naquela mesma madrugada, ainda fugindo a pé, o índio sentou-se em um cupim para descansar, foi picado por uma cobra jararaca e morreu.  

Parece que o espírito de João Francisco estava apenas esperando a morte de seu assassino. Assim que o índio foi morto pela cascavel, ele voltou a se ver, mas, não na terra. Ele se viu em uma gigantesca escadaria de prata que parecia flutuar e ser carregada por também gigantescas nuvens brancas. Ali, onde flutuava, ele não conseguia sentir ódio. Dali ele podia ver, como em um filme, cenas do mundo inteiro que não conhecia. Conseguia ver a dor de sua família, na terra, sendo consolada por anjos do céu. Mas, outros anjos, pequeninos, o despertaram para a nova vida que, agora, seria eterna. Outros anjinhos trouxeram até ele o espírito de Bárbara. Estava linda, chegou com o seu sorriso largo. Deram-se as mãos, beijaram-se intensamente e continuaram subindo, juntos, as escadarias do céu.  

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